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Nº 1987 - Ano 43
21.08.2017

Resoluções do Conselho Universitário

opiniao

Resistir ao esquecimento

Wellington Marçal de Carvalho*
Anália das Graças Gandini Pontelo**
Helder de Castro Bernardes Barbosa***

"Contra o esquecimento destruidor,
o esquecimento que preserva.
[...] é o esquecimento que
torna possível a memória."
(Paul Ricoeur)

Por ocasião do golpe militar de 1964, que lançou o Brasil na sombra de uma ditadura que perdurou até 1985, um grupo de brasileiros contrariou o regime que se instalara, pagando um alto preço, alguns com a vida, outros com imensos sacrifícios nas esferas pessoal, familiar e profissional.

Entre os brasileiros que integraram a resistência ao período de exceção que o nosso país vivenciou, destacamos a importante atuação de membros da comunidade universitária da UFMG. Foi o caso do servidor técnico-administrativo em Educação, hoje aposentado, Irany Campos, que, em razão de sua incisiva oposição ao regime ditatorial, enfrentou toda sorte de perseguições, inclusive no âmbito da instituição universitária em que trabalhava, onde sofreu processo sumário para fins de demissão, atendendo solicitação dos generais de plantão.

Esse processo, que teve caráter confidencial, foi instaurado pela Portaria 51, de 20 de outubro de 1969, do diretor da Faculdade de Medicina da UFMG, unidade em que Irany trabalhava, em atendimento à demanda do governo militar. Esse expediente foi publicado no jornal Estado de Minas, em 6 de junho de 1969, visando ao enquadramento do servidor no Decreto-lei 477, de 26 de fevereiro de 1969. Como isso não foi possível, Irany acabou sendo enquadrado por "incontinência pública e escandalosa", como supostamente previa o item II, Art. 207, da Lei 1.711, de 1952, que tratava do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União.

Em 3 de outubro de 1969, o jornal Estado de Minas registrou o pedido de prisão preventiva de Irany, decretado pelo Conselho de Justiça Permanente da IV Região Militar. Daí foi expedida a Portaria 57, de 11 de novembro de 1969, imediatamente encaminhada para publicação no Minas Gerais (Diário do Judiciário), no Caderno de Publicação de Terceiros, na página 17, em 12 de novembro de 1969.

Essas informações constam da documentação dos arquivos da Assessoria Especial de Segurança e Informação (Aesi/UFMG), que integram a Divisão de Coleções Especiais da Biblioteca Universitária da UFMG e estão disponíveis para consulta da sociedade.

Parte desse momento de história nacional foi objeto do artigo produzido por Isabel Leite, intitulado Apurando a subversão: um estudo de caso sobre a repressão na UFMG pelos arquivos da Aesi/UFMG, publicado no periódico discente Temporalidades, no volume 2, nº 1, de janeiro/julho de 2010.

Como se vê, a partir desse escorço histórico, a participação de Irany em atos de resistência contra a ditadura militar acarretou-lhe a perda de seu emprego na UFMG, vítima de arbitrariedade. Como se não bastasse, essa determinação impulsionou sua prisão e exílio do país. Irany foi um dos 70 presos políticos trocados pelo embaixador suíço Buchere que embarcaram no conhecido Voo da liberdade, que partiu em 14 de janeiro de 1971, em direção ao Chile.

Com o seu retorno ao Brasil, após a promulgação da Lei da Anistia, Irany foi reintegrado ao quadro de servidores permanentes da UFMG. Sua participação na luta contra o regime militar merece o reconhecimento da Universidade, notadamente por sua contribuição para a conquista das liberdades públicas de que hoje usufruímos – e que estão novamente em avançado estágio de supressão.

Esse compromisso da UFMG em lembrar a história institucional, que se faz marcada por ideais de liberdade, foi reafirmado em cerimônia realizada em 31 de março de 2014, junto ao monumento denominado Liberdade, instalado no gramado da Biblioteca Central, que homenageou integrantes da comunidade universitária que perderam a vida na ditadura. Naquela ocasião, Irany contou parte de sua história de expulsão da Universidade e defendeu a implantação de uma comissão da verdade, com sede na instituição.

A faceta de uma UFMG que se lembra de forma perseverante e se recusa a esquecer nos incita a concordar com Paul Ricoeur, para quem "o esquecimento designa então o caráter despercebido da perseverança da lembrança, sua subtração à vigilância da consciência". Isso se manifesta, no nosso ponto de vista, na exposição Desconstrução do esquecimento: golpe, anistia e justiça de transição, idealizada no escopo do projeto Memorial da Anistia do Brasil e abrigada no Centro Cultural UFMG, integrando as comemorações dos 90 anos da Universidade (leia mais na página 7). Na abertura da exposição, em junho de 2017, a Diretoria de Ação Cultural prestou homenagem simbólica a Irany, "expressão viva, em todos os sentidos da palavra, a razão e o sujeito dessa obra [a expografia]".

A presença de Irany, sobretudo nos tempos novamente sombrios que o Brasil atravessa, lembra-nos que resistir ainda é preciso.

*Servidor técnico-administrativo em Educação, bibliotecário-documentalista e doutor em Letras/Literaturas de Língua Portuguesa na PUC Minas. É diretor da Biblioteca Universitária/Sistema de Bibliotecas da UFMG

** Servidora técnico-administrativa em Educação, bibliotecária-documentalista e mestre em Administração. É vice-diretora da Biblioteca Universitária/Sistema de Bibliotecas da UFMG

*** Servidor técnico-administrativo em Educação, assistente em Administração, advogado e especialista em Direito