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Nº 1987 - Ano 43
21.08.2017

Resoluções do Conselho Universitário

Economia virtuosa

De acordo com tese desenvolvida no Cedeplar, sucesso da cultura do açaí, que se baseia no conhecimento popular, traz lições valiosas para o processo produtivo brasileiro

Itamar Rigueira Jr.

Pouca gente sabe, mas há muito tempo, em Belém, capital do Pará, muito antes de virar moda no resto do Brasil e no exterior, o açaí (mais precisamente, o caldo grosso da polpa da fruta) é comido cotidianamente com farinha de mandioca e uma carne frita, que pode ser de peixe, frango ou boi. O pequeno fruto roxo – cultivado principalmente no Pará, no Amazonas e no Amapá – é, na verdade, um item corriqueiro da alimentação regional popular, herança de populações indígenas que já o plantavam e consumiam havia quase dois milênios, pelo menos.

O desconhecimento sobre a história e os hábitos regionais relacionados ao açaí, que ampliou sua fama depois que começou a ser exportado, suscita reflexões sobre o desperdício de oportunidades de se tirar partido do conhecimento e das práticas do cotidiano para incrementar as economias locais, inclusive por meio da exportação. Em tese defendida na Faculdade de Ciências Econômicas, o economista e historiador Harley Silva descreve as origens e o funcionamento da economia do açaí para propor alternativas de desenvolvimento que explorem, sem destruir, ambientes como a floresta tropical.

"A natureza é uma força produtiva com a qual perdemos grande parte do nosso vínculo. As monoculturas na Amazônia derrubam grandes porções de floresta sem que se saiba o que se está perdendo", afirma o pesquisador. "Há uma riqueza imensa que poderia ser inserida na vida econômica. Mas isso exige que se olhe para o patrimônio natural de maneira bem informada, não apenas sob o viés científico. É preciso respeitar e escutar as populações locais."

Domesticada pelos povos pré-colombianos há pelo menos mil anos, a palmeira do açaí, nativa da Amazônia, passou a ser fonte de alimento das populações ribeirinhas, e o hábito do consumo chegou a Belém, no bojo do grande crescimento da capital paraense, fomentado em grande parte pela migração, sobretudo na década de 1970.

Mediação urbana

Harley Silva, que foi orientado pelo professor Roberto Monte-Mór, dedica parte significativa do seu trabalho a demonstrar o papel da cidade na consolidação da economia do açaí. "A cultura começou a ser consolidada, por exemplo, com o aperfeiçoamento da despolpadeira (que separa a polpa do caroço) e com a formação de uma rede de distribuição popular formada por pequenas lojas, nos bairros populares de Belém", explica Harley, que passou um mês na capital paraense realizando entrevistas, aplicando questionários e observando os diversos aspectos da economia do açaí. Ele salienta que mesmo os povos antigos já se reuniam em grandes grupos na floresta, onde não apenas se amontoavam, mas reuniam e transmitiam conhecimentos sobre a biodiversidade. "Esses povos cultivaram e intervieram na floresta, ao longo de milhares de anos. Também por isso, não faz sentido falar em natureza intocada, nos moldes do discurso ambientalista focado apenas nas noções de conservação e proteção", diz o pesquisador.

Na tese, ele enfatiza a capacidade da vida urbana de articular e enriquecer a relação das populações com seus recursos naturais. Como base teórica, o pesquisador recorre a autores como Henri Lefebvre, que, segundo Harley, "resgata a vitalidade do urbano, que parecia ter sido completamente decomposto pela industrialização", e Jane Jacobs, que define as cidades densas e diversas "como o lugar onde a economia se dá, por meio da elaboração de respostas para as necessidades cotidianas".

Sem dependência externa

Para Harley Silva, a economia do consumo urbano da polpa do açaí em Belém é exemplo de processo virtuoso, baseado na articulação de recursos da biodiversidade com o mercado e em relações sociais regionais e técnicas de produção e processamento endógenas. "A economia do açaí não depende exclusivamente da mobilização externa, como se deu com produtos como a borracha", ressalta o autor. Por meio da ideia de socialização da natureza, ele demonstra "possibilidades de ampliação e enriquecimento do universo econômico, sem a mediação necessária da industrialização capitalista", que tem capacidade limitada para funcionar em contextos marcados pela diversidade natural e social, como ressaltou nas considerações finais de sua tese.

Ainda de acordo com o pesquisador, o acesso à "enorme diversidade da Amazônia" – e isso vale também para o cerrado e o que resta de Mata Atlântica – pode abrir portas para o desenvolvimento baseado na plataforma urbana e em cadeias de atividades e processos que envolvem e beneficiam estratos diversos da população. "Um dos obstáculos ao desenvolvimento, no Brasil, é a baixa capacidade da nossa sociedade de olhar para si mesma de forma mais generosa e cuidadosa", ressalta Harley Silva. "Não nos levamos a sério porque nos consideramos exóticos e precisamos parecer com os países centrais. E os interiores do Brasil estão cheios de açaís, recursos naturais que podem sustentar um desenvolvimento capaz de garantir a existência das florestas", afirma.

Tese: Socialização da natureza e alternativas de desenvolvimento da Amazônia brasileira
Autor: Harley Silva
Orientador: Roberto Luís de Melo Monte-Mór
Defesa em 8 de maio de 2017, no Programa de Pós-graduação em Economia do Cedeplar