“It’s a question of human beings in a mutual bond”
(É sobre seres humanos em um vínculo mútuo) – Paris is Burning, 1990
18 de junho de 2024
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Para além das batalhas de rap no Viaduto Santa Tereza ou do funk nacionalmente conhecido, há outra expressão artística e identitária que BH faz melhor do que ninguém: o Ballroom. Se essa palavra ainda não tem um significado claro para você, agora é o momento de mergulhar neste universo de expressividade, música, arte e, acima de tudo, resistência!
Primeiro, para entender melhor o que é essa cena cultural, vamos conhecer melhor as suas origens e voltar à década de 1920, no bairro de herança afro-americana Harlem, na zona norte da cidade de Nova York. Por lá, iniciou-se um expressivo movimento cultural substancialmente negro, conhecido como Harlem Renaissance, uma explosão artística de tudo aquilo produzido por mentes criativas negras que era desvalorizado frente ao branqueamento histórico, acadêmico e cultural. Assim, buscaram formas de reinventar suas presenças no mundo, a partir da rejeição de imagens estereotipantes.
O Harlem Renaissance inspirou movimentos sociais por séculos a vir (Créditos: Getty Images).
As interseccionalidades com as questões de gênero e sexualidade também eram marcantes nestas movimentações, com expressiva presença de pessoas LGBTQIAPN+, criando uma sub-cultura que se manifestava na música, no vestuário e, principalmente, na performance.
Na década de 1960, concursos de beleza entre drag queens e pessoas transgêneres tornaram-se bastante comuns na região. Um destes eventos, o Miss All-America Camp Beauty Contest de 1967, foi o pontapé inicial para o surgimento da cena ballroom.
Anunciada como a quarta colocada, Crystal LaBeija, participante negra e latina, se revolta e sai do palco sem esperar a coroação da vencedora. Ela denunciou a todos presentes o racismo e o padrão eurocêntrico sustentado ao longo desse tipo de competição, mesmo em um movimento de contracultura que deveria celebrar corpos marginalizados pela sociedade hegemônica. Aos comentários sobre ser uma “má perdedora”, LaBeija respondeu “Eu tenho direito de mostrar a minha cor, querida”.
Dessa indignação da participante e de sua recusa em se submeter ao sistema racista por trás dos concursos, nasceu, em 1972, o First Annual House of LaBeija Ball, a primeira competição voltada exclusivamente para pessoas queer pretas e latinas, bem como o marco que inicia a cultura Ballroom!
“Eu tenho o direito de mostrar minha cor, querida… Eu sou linda e eu sei que sou.” – Crystal Labeija. (Trecho de The Queen Documentary – 1967).
Crystal foi a primeira fundadora de uma house (casa), uma espécie de coletivo de pessoas LGBTQIAPN+, pretas e/ou latinas lideradas por uma mother (mãe) ou um father (pai), geralmente uma veterana com mais experiência e reconhecimento na cena.
Esse espaço de afeto e acolhimento, por muitas vezes, atravessava a instância figurativa e se tornava um ambiente físico, com membros de uma house vivendo juntos sob um mesmo teto. As circunstâncias sociais da época, com jovens sendo expulsos de suas famílias conservadoras devido às suas sexualidades, as dificuldades de se conseguir um emprego enquanto queer em uma conjuntura totalmente normativa e, posteriormente, o surto de HIV, fizeram com que fossem surgindo cada vez mais destes grupos por Nova York, sob o sentimento de encontro e pertencimento.
Os concursos de beleza deram lugar a eventos bem mais complexos, com lógicas únicas e próprias de expressão, os chamados balls (bailes), que rapidamente se solidificaram entre os grupos marginalizados da cidade.
Mas o que de fato é um “ball”?
Em termos práticos, os balls são eventos organizados pelos próprios membros da cena cultural, com fins de entretenimento, expressão e reconhecimento. Como uma competição, a cerimônia é organizada em categorias de dança, caracterização e performance, muitas das vezes temáticas e no formato de batalhas entre duas ou mais pessoas. Através das vitórias, as houses e os participantes em si desenvolvem sua reputação e legado na cena ballroom. Com possibilidades infinitas, as categorias surgem e se modificam de acordo com a house organizadora ou até mesmo a localidade do evento.
Uma delas ficou mundialmente conhecida nos anos 90… Imagino que você já ouviu falar, se gosta de relembrar os clássicos dessa época! “Vogue”, composição do álbum “I’m Breathless” da artista estadunidense Madonna, levou o voguing, cultura própria da comunidade afrolatina LGBTQIAPN+ dos EUA, para as rádios de todo o mundo. Este estilo de dança se inspira nas poses das mulheres brancas que estampavam as capas das revistas de moda da marca Vogue. Os competidores vão imitando, de acordo com o beat das músicas, as icônicas posições que marcaram o mundo da moda, naquela conjuntura muito mais preconceituoso que o contexto atual.
Movimentos corporais com linhas definidas são uma características do estilo de dança (Créditos: Vogue Austrália).
Trecho do videoclipe da música “Vogue”, interpretada por Madonna.
Com a necessidade de inclusão, premissa fundamental do ballroom, as categorias se desenvolvem a fim de dar continuidade a este processo de celebração de corpos dissidentes. A categoria Face, por exemplo, trata-se do rosto e da beleza natural do participante. Ao longo da performance, ou seja, do tempo de apresentação, são incorporados gestos e movimentos que emoldurem o rosto do competidor e os traços que se desejam enfocar aos jurados.
Na categoria Face, você deve evidenciar a beleza de seu rosto (Créditos: The Philadelphia Inquirer).
Já a Runway se inspira nas passarelas, exalando glamour e confiança na caminhada e na apresentação dos trajes vestidos.
Cena da série Paris is Burning (1990).
Na Realness, que surgiu como uma sátira às normas de comportamento em uma sociedade extremamente binária, você incorpora um personagem escolhido e convence os demais de que aquela é sua realidade.
Categoria do tipo Realness retratada na série Pose (Créditos: Divulgação Fox).
No Old Way, o foco são as linhas e a simetrias, enquanto o New Way incorpora a agilidade e a flexibilidade dos movimentos ginásticos.
Adaptada ao contexto brasileiro, a cena ballroom incorporou elementos das culturas locais para deixar as balls ainda mais a cara de quem participa. O Batekoo e o Passinho são duas categorias inspiradas nos sons nacionais que exaltam os passos de dança do funk, dancehall e twerk, bem como os movimentos de quadril e cintura. Estas são apenas algumas das inúmeras expressões próprias dessa comunidade!
Fundamentalmente política desde o momento de seu surgimento, a cultura ballroom abre espaço para que corpos “rejeitados” socialmente, seja por suas performances de gênero, padrões estéticos, raça, cor ou identidade, possam viver o seu ser e celebrar sua individualidade, origem e beleza. É um ambiente de diversão, acolhimento e reafirmação, com a voz ou com o corpo, de tudo que lhes é negado e inibido no mundo aqui fora.
Que lugar é lugar de ballroom?
Em entrevista à 13ª Temporada do podcast Rádio Terceiro Andar, produção radiofônica da UFMG, MJ dos Santos, conhecida na cena Ballroom como Legendary Mother Alcione Puzzle diz: “É uma cultura totalmente trans preta. E imagina a gente viver uma cultura trans preta dentro do país que mais mata pessoas trans? É um desafio muito grande! Então, a minha comunidade tem essa noção, a sociedade não tem essa noção.”
Apesar das investidas conservadoras e do tradicionalismo ainda incrustado na sociedade mineira, o Ballroom vem se estabelecendo cada vez mais no cenário cultural dos últimos anos, graças aos esforços da comunidade LGBTQIAPN+. O BH Vogue Fever, por exemplo, é um festival internacional de dança que celebra o Vogue e o Ballroom na América Latina e acontece anualmente bem aqui, em território belo-horizontino! O evento, idealizado por Tetê Moreira, Paula Zaidan e Raquel Parreira, também conhecidas como ‘Trio Lipstick’, foi o primeiro festival do tipo no Brasil.
Em junho de 2023, por indicação da vereadora Iza Lourença (PSOL), a Câmara Municipal de Belo Horizonte concedeu o título de Honra ao Mérito à Cultura Ballroom. No evento de condecoração, a vereadora chamou atenção para o fato de que, em face da opressão diária, é no espaço dos balls que muitas pessoas encontram a liberdade para ser quem são, sonhar novas possibilidades para si e para os outros e, acima de tudo, existir e resistir.
Lenny DuBeco, da House of Dubeco, no evento Masterplano BH (Créditos: Rafaela Urbanin).
Para mergulhar mais fundo
Por fim, se você, leitor, quer conhecer ainda mais sobre este universo único de arte e resistência, ficam aqui algumas dicas de produções audiovisuais que retratam com maestria a cena Ballroom e a história de luta desta parcela da comunidade LGBTQIAPN+!
Paris is Burning: este documentário necessário e inspirador acompanha a cena drag queen nova-iorquina dos anos 1980, com foco nos bailes, no palco, na dança e, especialmente, nas ambições e sonhos dos performers do Harlem.
Elenco do documentário Paris is Burning, de Jennie Livingston (1990).
Pose: a série de três emocionantes temporadas também se situa em Nova York, no final da década de 1980, em meio à propagação descontrolada do HIV e o preconceito latente. No enredo, Blanca abriga jovens LGBTQIAPN+ que foram expulsos de suas casas e, juntos, passam a competir nos bailes como a House of Evangelista.
Trecho da série Pose (Créditos: Divulgação/Fox).
Legendary: este reality show é uma competição de voguing, dança e performance onde grupos disputam desafios temáticos propostos a cada episódio para se salvarem da eliminação.
Jurados do reality show Legendary, produção do HBO Max.
[Texto de autoria de Maria Eduarda Abreu, estudante de Jornalismo e estagiária do Núcleo de Comunicação e Design]
Referências
Crystal LaBeija, a mãe do Vogue
Podcast Rádio Terceiro Andar – A Cultura BallRoom na capital mineira (Ep. 17, 13ª Temporada)
The Queen Documentary (1967)
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