Educação Indígena: da vida para a escola – Espaço do Conhecimento UFMG
 
visite | BLOG | Educação Indígena: da vida para a escola

Educação Indígena: da vida para a escola

19 de abril de 2022

 

Dona Libertina Ferro e dona Lurdes Evaristo, duas mestras Xakriabá que trabalham com barro, foram convidadas pela Faculdade de Arquitetura da UFMG para serem professoras da disciplina Arquitetura e Cosmociência. Ao ensinarem sobre a feitura das casas tradicionais de seu povo, que duram de quatro a seis anos, foram questionadas por um aluno se elas não gostariam de ajuda para desenvolver uma técnica para que a casa tivesse maior durabilidade. Ao que dona Libertina respondeu: “Não, meu filho, essa proposta sua é muito perigosa, porque a casa, ela precisa se desfazer entre quatro e seis anos para que eu possa continuar ensinando para meus filhos e para meus netos! Se a casa durar a vida toda, coloca em risco o ensinamento, a transmissão deste conhecimento” (XAKRIABÁ, 2020). 

 

Os povos indígenas no Brasil são muitos e são diversos. Segundo dados do Censo Demográfico do IBGE, viviam no Brasil, em 2010, 896.917 pessoas indígenas, pertencentes a 305 povos, com 274 línguas.  Assim, as experiências “educação indígena” e das “escolas indígenas” não são homogêneas. Aliás, o próprio termo “indígena”, apesar de seu peso político, não é suficiente para traduzir a diversidade dos povos originários (BERGAMASCHI, 2022). 

 

Os modos de vida próprios de cada povo estão refletidos, também, nas suas formas de ensinar e aprender! Neste texto, vamos mergulhar nesse tema por meio das práticas educativas de dois povos que localizam-se em Minas Gerais – os Xakriabá e os Pataxoop. Você pode conhecer mais sobre esses povos na exposição Mundos Indígenas, nas vozes dos (as) curadores (as) Vicente, Edvaldo e Célia Xakriabá, e Kanatyo e Liça Pataxoop. 

 

Da vida para a escola

Antes da chegada do giz às aldeias Xakriabá, existiu o tempo do barro e o tempo do Jenipapo, nos conta Célia Xakriabá, liderança indígena e professora (XAKRIABÁ, 2020). Durante o tempo do barro não havia escrita, mas os conhecimentos eram preservados na memória através da transmissão oral – como ainda é hoje. As mãos que moldavam as casas, os potes, as panelas de barro imprimiam num pedaço da terra o conhecimento tradicional. E através da escuta e da vivência no território aprendia-se a cantar, a colher, e, principalmente, a fazer artesanato.

 

O tempo do Jenipapo é fortemente marcado pela pintura corporal. Segundo Célia, a pintura demarca a identidade de seu povo através do contato entre o corpo e o espírito (XAKRIABÁ, 2020). Sua transmissão é uma forma de educação indígena, que, para os Xakriabá, está muito ligada à ideia de manutenção da tradição. O tempo do barro atravessa o tempo do Jenipapo, pois, durante uma época de forte perseguição por fazendeiros, os Xakriabá tiveram que pensar uma maneira de esconder, e ao mesmo tempo, preservar sua identidade. Assim, as pinturas corporais passaram a ser guardadas nas cerâmicas, que, por sua vez, eram enterradas.

 

Aikute: O território nas crianças Xakriabá. Foto de Edgar Kanayõ Xakriabá 

 

Para Dona Liça, liderança indígena Pataxoop e professora, a escola também está no território. Assim, seu povo pesca o conhecimento do ambiente, “através das imagens da natureza, dos códigos da natureza, dos conhecimentos que temos sobre a natureza” (PATAXOOP; PATAXOOP, 2020, p. 136). Os ventos brandos anunciam que é hora do ritual para as sementes, o voo de algumas aves marca a chegada do Grande Tempo das Águas. Dessa forma, o território é quem ensina, e para aprender, é preciso sentir a natureza.

 

Essas concepções de ensinar e aprender são bastante diferentes daquelas com que estamos acostumados. Desde os tempos da colonização o homem branco negava as formas de educação dos povos indígenas e acreditava que esses deveriam ser civilizados pela escolarização. Na história do Brasil, primeiro através dos colégios jesuítas e posteriormente pela criação de escolas geridas pelo Estado nacional, impôs-se a essa população a catequese e a alfabetização em português, além de proibir-se o uso de suas línguas maternas. A escola, então, servia de instrumento para a introdução dos valores ocidentais brancos e o apagamento da cultura indígena. 

 

Mas os povos indígenas sempre resistiram e lutaram pela transformação desse modelo, e em 1988 garantiram, através da nova Constituição, alguns direitos como o de reconhecimento à diferença. Ainda, em 2008, tornou-se obrigatório o ensino de cultura indígena nas escolas urbanas. Mas esse ensino geralmente estava (e, algumas vezes, está) associado à comemoração do “dia do índio”, que generaliza essa população tão diversa e acaba por reforçar estereótipos e preconceitos. Em 2009, foram elaboradas novas diretrizes para educação escolar indígena, entendendo a escola como um direito que deveria servir à valorização e fortalecimento de sua cultura. Essas transformações caminharam juntas com sua entrada nas universidades, quando passaram a ocupar esse importante espaço de produção de conhecimento. 

 

Desde 2009, a Faculdade de Educação da UFMG mantém o curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas (FIEI), com o objetivo formar professores indígenas em cursos de licenciatura com foco intercultural. O FIEI possui um processo seletivo voltado para estudantes indígenas e ao longo de sua existência formou estudantes dos povos: Xakriabá (MG), Pataxó (MG e BA), Pataxó Hã Hã Hãe (BA), Maxakali (MG), Pankararu (PE), Guarani Mbya (ES e RJ), Guarani Nhandeva (RJ). O curso possui quatro áreas de habilitação: Línguas, Artes e Literaturas; Matemática; Ciências da Vida e da Natureza; e Ciências Sociais e Humanidades. O processo de formação tem como referência a realidade dos povos indígenas e o contexto da educação escolar indígena no país. A relação da UFMG com os povos indígenas, através do FIEI e de outros projetos, resultou nas curadorias Maxakali, Pataxoop, Xakriabá, Yanomami e Ye’kwana da exposição Mundos Indígenas.  

 

Através de diferentes metodologias, os povos indígenas reinventaram as escolas em seus territórios. Nas aldeias Xakriabá, desde os anos 1990, vemos um movimento de confrontação com o currículo escolar tradicional. Assim, criaram-se em algumas escolas da Terra Indígena (atualmente 34) os professores de cultura, que são responsáveis por trazer elementos da cultura à sala de aula. São aulas de canto, de pintura, de medicina tradicional e muito mais. Eles são escolhidos pelos membros da comunidade e não precisam necessariamente de uma formação escolar para lecionar, pois seus saberes foram adquiridos através de outras vivências!

 

Já os Pataxoop adotaram a metodologia dos tehêys de pescaria de conhecimento na escola da aldeia Muã Mimatxi. Os tehêys são desenhos-narrativas desenvolvidos por Dona Liça, professora que leciona a disciplina “Cultura e usos do território”, que funcionam como registros da história de seu povo e material didático para a educação de jovens. Eles falam sobre os valores, as tradições, os mitos e a ancestralidade Pataxoop. Assim, transmitem os saberes tradicionais e preservam também a transmissão oral em detrimento da imposição da escrita, ligando a educação indígena à educação escolar. 

 

Tehêy História da Kayãyun, Dona Liça Pataxoop 

 

Neste texto, abordamos como os povos Pataxoop e Xakriabá transformaram as escolas e a educação. O giz que chegou às aldeias para apagar a cultura é agora utilizado, nesses casos, para afirmar os direitos dos povos indígenas, valorizando a sua língua e seus saberes tradicionais. 

 

Você pode encontrar os tehêys de pescaria de conhecimento Pataxoop, as peças de cerâmica Xakriabá e muito mais na nossa exposição Mundos Indígenas.

 

[Texto de autoria de Ana Vila Pacheco, aluna do curso de graduação em História e estagiária do Núcleo de Ações Educativas do Espaço do Conhecimento UFMG]

 

REFERÊNCIAS E PARA SABER MAIS 

BERGAMASCHI, Maria Aparecida; FERREIRA, Bruno; MEDEIROS, Schneider Juliana. Educação, Escola e Povos Indígenas no Brasil. In: GAZOLA, P. Cássia, Kênia et al. (org.) Educação e Nação no Bicentenário da Independência. Belo Horizonte: KMA, 2022, 86-98. Disponível em: <https://portaldobicentenario.org.br/wp-content/uploads/2022/03/E-Bool-Educacao-e-Nacao-no-Bicentenario.pdf

 

BRAZ, Werymehe Alves; VALADARES, Juarez Melgaço. Educação na aldeia e escola indígena de Muã Mimatxi: o tehêy de pescaria de conhecimento. Educação e Pesquisa, v. 47, 2021. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/ep/article/view/193613/178619

 

Formação Intercultural para Educadores Indígenas (FIEI): https://fiei.fae.ufmg.br/ 

 

PATAXOOP, Liça; PATAXOOP, Kanatyo.O grande tempo das águas. In: Ana Maria Rabelo; LIMA, Deborah; OLIVEIRA, Mariana; MARQUEZ, Renata (org.). Catálogo da exposição Mundos Indígenas. Belo Horizonte, 2020, 135-169  Disponível em: <https://www.ufmg.br/espacodoconhecimento/wp-content/uploads/2018/03/ec-ufmg_2020_mundos-indigenas_catalogo_web.pdf  > 

 

PEREIRA, Verônica Mendes; GOMES, Ana Maria Rabelo. A produção e a circulação da cultura pelas fronteiras da escola indígena Xakriabá. Revista Brasileira de Educação, v. 24, 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1413-24782019240027

 

Povos indígenas no Brasil: Quantos são? Instituto Socioambiental, 2019. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/Quantos_s%C3%A3o%3F>

 

XAKRIABÁ, Célia. Amansar o giz. PISEAGRAMA, 2020. Disponível em: <https://piseagrama.org/amansar-o-giz/