Na manhã do dia 15 de junho de 2020, o corpo de bombeiros de Belo Horizonte foi chamado para debelar um incêndio que destruía a Reserva Técnica 1 do Museu de História Natural e Jardim Botânico (MHNJB) da UFMG. As instalações abrigavam uma das mais importantes coleções de arte popular, arqueologia, paleontologia, etnografia, botânica e zoologia do país, com destaque para a maior coleção de esqueletos antigos das Américas.
O ensaio visual Vestígios de Fogo apresenta um mergulho nas diferentes camadas de sentido expostas no local do incêndio. Escavar os escombros de um incêndio não é escavar um sítio arqueológico. A camada perturbada de um sítio, aquela onde encontramos vestígios misturados, sem contexto, é a única camada que temos.
Um incêndio é perturbador.
Do cenário destruído pelo fogo, com estruturas de ferro retorcidas e um mar de entulho formado por telhas quebradas, ossos calcinados, conchas e restos de animais, um mundo até então oculto se revela aos olhos. Em meio à estante de uma coleção, aparecem fragmentos ósseos arremessados da estante em frente. Sobre pranchas metálicas dobradas pelo fogo, há restos vegetais que não queimaram. A estratigrafia não é formada de terra, mas de prateleiras metálicas, retorcidas, invertidas, arremessadas, ou apenas desabadas. Tomados pela vertigem da tragédia, aos poucos nos aproximamos ainda mais, tentando compreender mensagens microscópicas. Texturas que florescem enegrecidas, misturas não usuais de materiais e formas que desafiam seus destinos em um abraço caótico, fugas invisíveis que se deixam revelar pela fotografia imaginária das substâncias derretidas.
Um incêndio não acaba.
Vestígios de Fogo se compõe de imagens organizadas em quatro vídeos de cerca de três minutos cada. Neles, dípticos dinâmicos apresentam relações visuais entre diferentes elementos e cenários que, em sincronia com a trilha sonora, surgem como vozes complementares em uma harmonia sensorial voltada a aproximar o espectador da tragédia de um incêndio como esse.
Mas além do destrutivo, existe também algo poderoso nesse evento. Essa inacreditável resistência dos materiais mais delicados, que foram queimados, arremessados, desabados, encharcados com água e mesmo pisoteados, e que resistiram, (r)existem, existem de novo agora. É nessa resistência que reside agora a nossa força. Resistência que parece nos contaminar, como equipe. Cada elemento que retiramos dos escombros é um compromisso firmado pela sua existência.
Um incêndio, paradoxalmente, é isso: resistir.
Para além dos vestígios sobreviventes das coleções ali armazenadas, a equipe agora trabalha também no resgate de outra coleção, nova, a coleção do incêndio, uma memória dolorida que não podemos deixar para trás. Vestígios de Fogo faz parte dessa memória.
Fotografias, produção e edição das imagens: Rogério do Pateo