Cotas contra as injustiças
Emir Sader*
“Todo mundo é igual diante da lei”. É
bom que a afirmação esteja na nossa
Constituição, como afirmação do nosso
desejo que um dia o Brasil seja assim.
Contanto que saibamos que a realidade do
nosso país é totalmente outra, é
contraditória com essa igualdade afirmada
na lei. Que o Brasil é o país mais injusto do
mundo, não porque seja o mais pobre, mas
pela polarização entre riqueza e miséria,
que é a maior de todos os países.
A pobreza e a miséria têm cor, têm sexo
e têm idade. São sobre tudo negros,
mulatos, mulheres, idosos, crianças,
jovens. São a grande maioria dos
brasileiros, desprovidos dos direitos mais
elementares. São os “excluídos” pelo
“mercado”, que contempla apenas os que
correspondem às demandas do
capitalismo – alguma mão de obra
altamente qualificada, um punhado de
consumidores de luxo para seus produtos
sofisticados, pessoal de elite para
reproduzir o sistema de iniqüidades que
garante as desigualdades e as injustiças
que comandam a nossa sociedade.
O Brasil é o exemplo mais típico de uma
sociedade “escravista”, em que a riqueza
acumulada ao longo dos séculos foi
produzida pelos negros trazidos à força da
África para enriquecer as potências
colonizadoras. Isso ocorreu durante
séculos e quando terminou a escravidão,
os negros “livres” ficaram reduzidos à
condição de pobres e miseráveis, sem
acesso às terras em que haviam trabalhado
durante centenas de anos.
*Sociólogo, Professor da UERJ e Coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ.
Sociólogo, Professor da UERJ e Coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ.Fonte: Jornal do Brasil, 9 de julho de 2006
A discriminação é uma das vertentes
que articulam a sociedade brasileira e a
discriminação racial é a mais importante
delas. Como diz o manifesto em favor do
projeto de lei 7399 e do Estatuto de
Igualdade Racial, divulgado esta semana:
“Mesmo nos dias do apartheid, os negros
da África do Sul contavam com
escolaridade média maior que a dos negros
no Brasil no ano 2000″. A porcentagem de
professores negros nas universidades sulafricanas
ainda na época do apartheid era
bem maior que nas nossas universidades
públicas. Os docentes negros nas
universidades públicas brasileiras não
chegam a 1%, enquanto os negros são
45,6% da população do país.
O racismo não será introduzido na
sociedade brasileira pela aprovação da lei
de cotas e do Estatuto da Igualdade Racial.
Ele está inscrito estruturalmente na nossa
sociedade, permeia todos os seus rincões,
penetra nas mentalidades e nos discursos.
Do que se trata é de assumir essa situação
construída historicamente e avançar na sua
superação. A linha divisória é entre os que
querem deixar tudo como está – que
funcionem bem as leis, para que a
igualdade afirmada na Constituição se
transforme em realidade (pelas mãos de
quem? do mercado?) e os que assumem
a necessidade de ações afirmativas que,
colocadas em práticas já em mais de 30
instituições de ensino superior nos últimos
quatro anos, têm produzido resultados
positivos. O rendimento dos cotistas têm
sido, como demonstram diversas
pesquisas, igual ou superior ao dos que
ingressaram pelo sistema universal. A
implementação dessas políticas em nada
acirrou os ânimos e os conflitos em termos
raciais, ao contrário, permitiu elevar – ainda
que em grau muito pequeno até aqui – a
participação dos que têm sido socialmente
excluídos do acesso às universidades
públicas no Brasil.
O que caracteriza os que lutam de
forma ativa e conseqüente contra as
desigualdades, as injustiças, a pobreza, a
miséria é, antes de tudo sua indignação
com essas situações, sua denuncia
persistente dos massacres, das chacinas,
das violências, das discriminações, de
todas as formas de opressão, de
exploração. Mas também é a capacidade
de transformar essa indignação em
iniciativas concretas, que mobilizem,
avances na consciência e na organização
para superar essas situações. A lei de cotas
e o Estatuto da Igualdade Racial tem que
ser julgados nessa ótica: como avanços
na resolução dos problemas seculares que
o Brasil arrasta e que são responsáveis pela
desigualdade que marca a nossa sociedade
como uma de suas características
fundamentais.
Os intelectuais interpretaram as nossas
desigualdades de diferentes maneiras.
Trata-se agora de combatê-las e de
transformar o Brasil em um país menos
injusto, mais solidário, menos mercantil,
com afirmação dos direitos de todos –
especialmente dos secularmente
discriminados.
LABORATÓRIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS – PROGRAMA POLÍTICAS DA COR NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA - Nº 27 - JUNHO-JULHO/2006
Nº 27 - JUNHO - JULHO/2006