CAMÉLIAS POR OUTRA ABOLIÇÃO

O Brasil de 2005 mantém reflexos de um país que foi escravocrata por cerca de 350 anos e deixou de sê-lo, em 1888, com mais formalismos e princesas do que zelo e vínculo a alguma imagem de futuro para ex-escravos(as) negros(as), mesmo para homens e mulheres pobres brancos(as) livres e índios(as) que, na prática, convergiam para condições sociais assemelhadas, como provou a mudança para a borracha da Amazônia de refugiados da seca nordestina no tempo da abolição. Não é demais lembrar que para ex-escravos(as) o quadro social era o mais pérfido.

As camélias escolhidas como símbolo da luta abolicionista pelo Quilombo do Leblon, no Rio de Janeiro, apressaram, com simpatia social, o advento de novos tempos para a população negra. No entanto, o Brasil legou uma abolição incompleta: não foi incentivada a escolaridade, não se deu a posse da terra, faltou o lugar para morar, o emprego, a renda.

Hoje, é tenso, na academia e na sociedade, o debate das cotas em universidades. Os lados pegam em armas. Um lado rejeita a idéia com ares sapiensais e argumentos rebuscados: apela ao “mérito” como âncora discursiva principal; impele, manda de volta os(as) sem-universidade para as primeiras letras; ora recusa para a universidade o papel de reparador das mazelas sociais; ora diz que já começou a colocar esparadrapos na ferida social exposta; outrora acusa de racismo ou esmolas “essa coisa de cotas” e, por último, pede paciência e clemência aos tempos, afinal, um dia as coisas melhorarão no Brasil.

O outro lado, dos movimentos sociais brasileiros, do movimento indígena, do movimento negro, bate o bumbo por direitos historicamente negados. Nessa querela, que não é menor, percebe-se como é o poder no Brasil real: é mais afeito à imagem de passado do que a imagens futuras de coesão social e comunhão de direitos por todo o povo brasileiro.

O lado que rejeita as cotas sabidamente defende privilégios a qualquer custo, com quantas cortinas de fumaça retóricas lhes sejam necessárias, para não falar dos interesses difusos da chamada indústria do vestibular. Porém, uma realidade salta aos olhos de qualquer brasileiro(a) comum: nas principais carreiras universitárias no Brasil já existem cotas. Elas são para brancos, para os ricos e para a escola privada.

Segundo dados de outubro do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep/MEC), no curso de Arquitetura, 84,5% são brancos(as); em Odontologia, 81,8%; Medicina veterinária, 80,9%; Engenharia mecânica, 80,6%; Farmácia, 79,9%; Direito, 79,4%; Jornalismo, 78,4%; Administração, 78,4%; Psicologia, 78,1%; e Medicina, 77,7%. No caso da Universidade de São Paulo (USP), a análise de ingressantes em 2004 nas principais carreiras não deixa dúvida: são brancos(as), de escola privada, renda média elevada e não das regiões de periferias, conforme atestaram reportagens do jornal Folha de São Paulo. Em alguns cursos de Medicina em universidades federais, esse padrão de cota chega a ultrapassar 90% do alunado.

Da Lei Áurea ao Deus-dará

Essa política de cotas reais tem raízes profundas, com os pés bem fincados no chão do poder no Brasil, pois se repete historicamente com dados ainda mais perversos, o que reforça a sua caracterização como privilégio, como a cena do crime e as digitais do criminoso ajudam na tipificação de um crime. Mas os privilégios sempre tem defensores. Desde a mecânica clássica de Newton, ficou famoso o dito que “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço”. Daí a grita de certos setores da sociedade brasileira.

Pois bem, a defesa dos privilégios só faz repetir o passado quando não consegue projetar um futuro diferente para a nação, mas apenas enxerga o potencial mal privado (aos privilégios) que as mudanças da regra do vestibular, em tese, trariam. Neste sentido, pode-se falar em neoescravocratas no Brasil. É que os escravocratas do século 19 fizeram de tudo para impedir o fim da escravidão: enfrentaram os liberais ingleses, apavoraram-se com a “Revolta Negra”, desqualificaram e reprimiram, a ferro e fogo, os revoltosos, os liberais temiam por seu “empobrecimento” com o fim da posse das “peças”, “embranqueceram” a sociedade, corromperam os políticos e o Império pela manutenção da ordem escravocrata e inventaram a moda que ficou famosa na boca do general Golbery do Couto e Silva tempos depois: transição lenta, gradual e segura. Primeiro a Lei de Terras e o Fim do Tráfico Negreiro (1850); depois a Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei do Sexagenário (1885); enfim, a abolição (1888). Da Lei Áurea para o Deus-dará foi a sina de muita gente. Cozido à base da escravidão, o liberalismo brasileiro do século 19 foi sui generis. Vale o mote: novos liberalismos, novos escravismos.

Ao rejeitar o método dos escravocratas e de Golbery para a mudança de políticas de cotas reais nas universidades brasileiras, os movimentos sociais defendem a qualificação da escola pública fundamental e média sim, sem, no entanto, usar isso como saída para escamotear os privilégios hoje reinantes nas universidades. Defendem o mérito à medida que reconhecem a existência de milhares de talentos na escola pública que, com certeza, não trairão a lei das probabilidades. Pesquisas, como a realizada pela Universidade de Campinas (Unicamp), em 2005, já identificam desempenho acadêmico superior dentro da universidade das pessoas oriundas da escola pública.

Faltam vagas públicas no ensino superior, faltam investimentos na educação, faltam vagas públicas noturnas e faltam mudanças na forma de acesso às vagas. Dez milhões de brasileiros e brasileiras se espremem no ensino médio hoje no Brasil. Ou o país projeta futuro para essa gente ou não haverá nação nenhuma – a não ser a reprodução do país desigual, onde o acesso à educação superior pública e de qualidade virou senha apenas para elites.

Firmemos o pé na defesa da presença de negros(as), ìndios(as), pobres, da periferia, da escola pública nas principais carreiras universitárias. Não nos agarremos na cota existente para negar o futuro. Sejamos apenas justos e éticos. Como se percebe, não é apenas uma questão de ser a favor ou contra cotas. Sejamos abolicionistas de novo, juntos, vários estratos sociais, variadas cores. Façamos outra abolição já, em nome de quem vive hoje e de outra imagem de futuro para o Brasil. Imagem de futuro que se constrói a partir de oportunidades iguais em educação. Façamos outra abolição em nome da dignidade do povo brasileiro. Convidemos o povo a entrar na universidade. Enchamos nossos lares, nossas ruas, nossas praças com camélias brancas.

Movimento dos Sem Universidade

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