Universidade Federal de Minas Gerais

Imagens: Sara Grumbaum
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Brunello: regulações devem expandir as fronteiras para o conceito de pessoa

O Direito não pode ignorar as biotecnologias, analisa Brunello Stancioli

sexta-feira, 29 de abril de 2011, às 10h40

Encerra-se hoje, na Fafich, a segunda edição do colóquio Biotecnologias e Regulações, que trouxe à UFMG cerca de 20 especialistas estrageiros e brasileiros para o debate. Promovido pelo Ieat e pelo Núcleo de Estudos do Pensamento Contemporâneo da Universidade, o evento leva ao público novo esforço de pensar uma das questões mais polêmicas e complexas da atualidade: as repercussões das biotecnologias na chamada condição humana e na sociedade contemporânea.

Brunello Stancioli, professor da Faculdade de Direito da UFMG, um dos convidados, expôs ontem, sua visão sobre o tema. Pesquisador de temas como pessoa natural, bioética, autonomia, melhoramentos humanos e direitos fundamentais, ele expôs parte das questões que circundam o evento em entrevista ao Boletim, cuja versão ampliada o Portal da UFMG divulga agora ao leitor.

Jürgen Habermas já comentou que um primeiro sentido de perda humana veio com Galileu, que lhe retirou a noção geocêntrica. Veio depois Darwin e derrubou a ideia antropocêntrica na natureza. Agora, as biotecnologias questionam a fronteira do corpo. Como a área jurídica sente esses reflexos da tecnociência, especialmente de sua relação com os direitos humanos?
No Brasil, a área é pouco sensível às novas tecnologias. A primeira reação é afastar-se delas, proibi-las ou limitá-las. Mas elas podem gerar resultados positivos. Uma pessoa com alguma doença genética pode, por exemplo, ter acesso à tecnologia reprodutiva, com seleção embrionária. Isso, claro, se tiver dinheiro. Mas seria interessante tornar essas tecnologias acessíveis a todos, talvez até sob a égide de um direito fundamental, derivado do Direito à Saúde. O medo no Brasil de enfrentar o problema poderá gerar atraso no desenvolvimento desses recursos e, na sequência, criar um hiato entre quem poderá ou não utilizá-los.

Essa é a visão predominante nos tribunais?
Esse sentimento é dos juristas de uma maneira geral. Mas o primeiro problema que vamos ter com essa visão é que os direitos humanos foram pensados para um dado conceito de humano. E agora estamos buscando novas fronteiras para além do Homo sapiens.

Para além da condição natural dele...
Mas o que é a condição natural humana? Tentamos demonstrar que é típico do homem agir sobre a realidade, transformar o ambiente, o outro ou a si mesmo. Isso nos distingue do ambiente, que é conformado. Podemos interferir nesse processo e decidir o que é ou não humano. No campo da tecnologia, há desde melhoramentos muito simples, como a vacina, até outros mais complexos. O chamado melhoramento humano pode reconformar a condição do Homo sapiens. Nesse sentido, sou entusiasta do bioprogresso, a busca do ser humano em superar o próprio limite.

A pesquisa sempre propõe algum tipo de inovação. Como comitês de ética , inclusive o da UFMG, para experimentação em humanos, lida com a ausência de regras para situações novas? Eles são o espaço real do embate dessas questões?
A base da experimentação com os seres humanos é o respeito à autonomia do sujeito de pesquisa, do pesquisado, via consentimento informado. Então, o Termo de Consentimento Esclarecido é peça central. E a ideia da autonomia - o respeito à privacidade, à integridade física do pesquisado - está na Cosntituição. É certo que há portarias específicas para pesquisa com seres humanos, mas acho que, muito maior do que isso, é buscar na própria Constituição os princípios fundantes de como deve ser tratado o ser humano como sujeito de pesquisa. A investigação, no entanto, de melhoramentos humanos está um pouco incipiente no Brasil. No comitê de ética da UFMG não vi nada parecido. Além disso, o papel deles era mais pedagógico, porque o brasileiro não estava acostumado a esses protocolos de pesquisa. Hoje, eles são para qualquer tratamento no mercado. Se você vai a uma clínica de ponta para um tratamento, terá de preencher termo de consentimento. Mas o que me preocupa é aquela pesquisa mais robusta, que ainda não está nos comitês, ainda vai chegar lá, como a de transgenia humana. Essa ideia assusta a maioria das pessoas. Mas nós somos seres transgênicos. O processo ocorre no meio ambiente e nós não seríamos o que somos se não fôssemos transgênicos. Transgenia é a troca de material genético de espécies diferentes. Mas e forçássemos esse processo para a frente? Acho que o principal aí é garantir a autonomia do ser que vai ser gerado.

O direito tem como referência a prudência nas discussões sobre interferências na genética humana, porém é mais permissivo para questões relativas à saúde. Parece-me que uma hora o Estado está dizendo que o corpo é do sujeito e na outra, que pertence a ele. Como extrair coerência dessa discussão?
Essa visão traz uma dicotomia equivocada entre o Estado e o sujeito. A autonomia privada só faz sentido perante a autonomia pública. As normas são produtos da autonomia pública dos seres envolvidos. Só haverá Estado democrático de direito se tivermos seres capazes de legislar para si mesmos: a leitura e a aplicação dos direitos fundamentais são feitas pelos próprios interessados. Reduzir o direito ao tribunal é como encapsular a física no laboratório. À medida que esses direitos fundamentais são produtos da autonomia pública e privada, aí estamos verdadeiramente numa sociedade democrática. Sobre a atitude de prudência, creio decorrer mais do desconhecimento e de certo temor do que propriamente de um sentido protetivo – que, se existe, é de cunho paternalista, de proteger a pessoa de si mesma. Mas nós nos autoinstrumentalizamos o tempo todo. Os mehoramentos humanos caminham nesse mesmo sentido, de utilizar o corpo humano, manipulá-lo para que ele tenha um projeto de vida melhor, uma vida boa.


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O debate sobre o uso de células-tronco embrionárias e sua permissão no Brasil trouxeram avanços na maneira de a sociedade enquadrar a questão?
Acho que foi muito pequeno. Podemos ir muito além. Num certo sentido, a ação contrária veio de grupos religiosos. Considero que a pressão religiosa na esfera pública é o grande freio que temos nessas pesquisas. É legítimo que esses grupos se manifestem, mas não podem transformar uma moral particular numa ética de Estado. Há decisões judiciais sobre anencéfalos que chegam a argumentar que todos são criaturas de Deus e que o sofrimento purifica a mãe.

Na decisão judicial?
Sim, de segunda instância. Então a influência religiosa, nessa parte de biotecnologia e de manifestação do humano, é muito grande. A religião se manifesta de maneira insidiosa, em muitas vezes.

É um argumento válido para um Estado laico?
Na minha opinião, não. É lógico que o Estado laico não significa hostilidade à religião. Os vários grupos religiosos têm de conviver na esfera pública. Em última instância, a ética do Estado deve ser decidida pelos próprios interessados, que são todos os cidadãos.

A questão do consenso na ética lembra um pouco as argumentações de Habermas sobre a forma de obtê-la por meio da racionalidade comunicativa...
Não há a menor dúvida. Habermas caminhou, num certo sentido, na argumentação de racionalidade comunicativa; depois deu uma guinada conservadora, sobretudo quando escreveu O futuro da natureza humana. Ali, ele defende uma ideia de natureza humana estática, que é fortemente religiosa.

O excesso de individualismo na orientação dessa questão não levaria ao outro lado de eugenia definida pelo mercado?
Não. Vamos pensar sobre o que é eugenia. O Estatuto da Criança e do Adolescente preconiza que toda criança tem o direito de nascer saudável. Essa é uma “eugenia” posta sob a forma de lei. Agora, o terror ocorrido na Alemanha nazista levou a um conceito totalmente deturpado de eugenia. Achar que todos vão querer ter filhos loiros de olhos azuis é subestimar o poder de escolha do ser humano e sua capacidade de ser plural. O nascer saudável, que é a eugenia revisitada, demanda dos genitores uma postura ativa, uma predisposição de fazer de tudo ao seu alcance para que essa criança nasça sadia. Isso não implica redução de fenótipos ou etnias. É uma eugenia voltada para a autonomia – para que o filho possa se apropriar de sua herança genética e ter seu próprio projeto de vida boa.

Ainda com Habermas, ele questionava esse aspecto, perguntando sobre a relação entre o programador e o programado. Como, nessa desigualdade, poderia ser feito o reconhecimento da condição humana e da liberdade do novo ser?
Isso é algo bastante interessante. Mas observe: os pais, por meios elementares, escolhem como o filho será. Mas a carga genética não é escolhida pelo filho. Os pais definem nome, nacionalidade, educação, etc. O novo ser é capaz de se apropriar desse passado e se projetar no futuro. Esse é um conceito de transcedência, que é típico da pessoa humana. Não é a transcedência para Deus, mas aquela capaz de pensar novas realidades possíveis para o sujeito, como projeto de vida boa. Então, se eu manipulo essa pessoa antes de ela nascer, estou fazendo a mesma coisa que os pais fizeram ao me gerar. Só que ele contou com o acaso, a loteria genética. Diversos exames pré-nupciais e o pré-natal procuram controlar a gestação. Então, qual é o limite entre esse tipo de tratamento, que é norma entre nós, e interferir selecionando um embrião para que ele não tenha um problema genético grave? Será que é melhor deixar para a loteria genética ou ter a postura de intervenção?

Há grupos de portadores de deficiências que se colocam contra essa seleção porque ela criaria intolerância à convivência com pessoas especiais. Eles reivindicavam o direito de ser dessa maneira. Isso extrapola o direito individual...
Ele deve ser levada em conta. Mas selecionar para não ter uma doença não significa discriminar quem é doente. Não vejo correlação. Há um caso drástico das lésbicas surdas que se tornou polêmico até na internet. Elas queriam, por indução genética, por fertilização artificial, ter um filho surdo, para que ele pudesse se comunicar melhor com elas. Temos como princípio que ninguém pode interferir na autonomia procriativa dos pais. Mas aí podemos chegar até essa questão. Fizemos uma pesquisa em comunidades surdo-mudo e vimos que eles se consideram quase como uma etnia pois têm percepções melhores de espaço, de tempo, de sensibildiade., além de língua e valores particulares. Há uma operação feita em recém-nascidos feita para recuperar a audição que esses grupos se colocam contra. Mas será que esse tipo de não intervenção é legítima? Fazendo a intervenção será que eu não permito a essa criança escolher a vida boa de maneira mais consistente ou deixá-lo surdo é justamente negar a vida boa? As pessoas são muito complexas...

No caso brasileiro, a leii de Biossegurança vai até que ponto? Essa é uma questão em aberto?
A Lei de Biossegurança ainda é muito tímida porque limita muito a experiência com embrião. A questão é a seguinte: por que eu considero o embrião digno e um indivíduo por si mesmo? Se formos pensar, nem indivíduo o embrião é, porque indivíduo é aquele que não posso dividir, caso contrário perde as características básicas. Mas se eu pegar o embrião não posso dividir até em dois idênticos? Mais do que isso: ele é pessoa digna de proteção? Ora, a pessoalidade é uma construção que se dá na presença do outro. Essa proteção do embrião, considerando que é pessoa, pois na concepção houve infusão da alma, é contestável.


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Mas isso não foi rechaçado pelo STF, com a decisão sobre célula-tronco embrionária?
Até certo ponto. O STF contornou a questão. Ele disse: temos de proteger o nascituro, que é o que está no ventre da mãe, está por nascer. E embrião não é nascituro.

É possível obter consenso para isso uma vez que o tratamento do tema assume as diferentes perspectivas dos grupos da sociedade?
É preciso construir esse consenso.

Ele vai ser construído a partir de um conceito de pessoa, de necessidades sociais ou do mercado?
O conceito de pessoa que temos trabalhado aqui tem de dar conta de todas as situações. Tem de dar conta da pessoa que passa pelo biológico, mas também passa pelo social e até pela mercantilização.

Veja a discussão sobre organismos naturais em casos de patenteamento: só é admitido se houver alguma modificação. Após sofrer melhoramento, ele perde o status de natural e torna-se produto da cultura. Linhagens de céluals-tronco se encaixariam aí...
Quando você esquece a ideia de natureza e pensa que o real é o que já é manipulado ou que pode ser passível de intervenção, por exemplo, essa ideia de natureza cai por terra. Então, esses limites começam a ficar mais fluidos e a começamos a perceber que não há ordem preestabelecida.

Hoje a área jurídica brasileira coloca essa pergunta: avançar ou reconhecer o limite?
O debate está muito incipiente.

Ele está incipiente porque não chega aos tribunais?
Ele não chega, mas também decorre da pesquisa, que ainda está muito travada.

A área reconhece um limite...
Não sei se é isso. A atitude é ser prudente, deixar como está. Mas as novas tecnologias estão batendo à nossa porta cada vez com mais força, com mais vigor. Não há como ignorá-las.

Parece-me que apenas o Direito não vai dar conta da questão. Há muitos conceitos novos que a ciência está colocando...
E mais que isso: o Direito se esvazia completamente de sentido se não tem uma base ética. Sem ela, legisla no vazio. Como regulação com fim em si mesmo, não serve para nada. O Direito tem de ser pensado sobre uma matriz ética, que leve em conta a racionalidade tecnológica, a racionalidade discursiva, as racionalidades possíveis, até chegar a uma síntese que sirva como princípio normativo. E volto a dizer: os direitos humanos foram pensados para um humano estático.
Nós vamos ter que repensar os direitos humanos com um novo conceito de pessoa que é artífice de si mesmo.

A área precisa assumir o risco dessa nova condição...
Exatamente; esse risco é fundamental. Não se trata de um risco imposto ao outro, ele é compartilhado. Se não corremos o risco, não avançamos. A incerteza e o risco são os motores da mudança e fundamentais para o desenvolvimento humano, até para a sobrevivência da espécie, como vemos com o transplante de órgãos ou o bebê de proveta.

O estágio da questão no Brasil reflete a ausência da sociedade no debate?
Vamos pensar aqui de uma maneira mais global: o estado-nação não está dando conta desses problemas e das novas demandas mundiais, como as do meio ambiente. Eu resolvo isso no nível local ou no global? Os problemas de tecnologia devem ser resolvidos no nível global. O estado-nação perdeu muito o seu papel atuante. Nesse caso sobra a sociedade organizada decidindo o que é melhor para si. Grupos organizados podem ter uma reivindicação na esfera pública, muito mais consistente e contundente do que o estado-nação. Devemos relativizar essa fronteira entre estado e sociedade.

Direitos humanos têm sido postos sob essa perspectiva relativista...
Eles foram pensados em um tipo de sociedade, depois da revolução francesa, que tinha conceitos específicos de tecnologia e democracia. Ora, o fenômeno humano é complexo, pode ser visto em infinitas formas e ser reconstruído face às novas tecnologias. Então, proibir a pessoa de ser humana como bem entender é uma mutilação.

A comunidade da UFMG está receptiva a esse tipo de discussão?
Eu espero que sim.

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