Fotos: Bruna Brandão/UFMG Aberta ao público, a discussão acontece no auditório 1A do Centro de Atividades Didáticas (CAD I), no campus Pampulha. Confira a programação completa aqui. Segundo João Vinícius Salgado, os novos conhecimentos põem em jogo o próprio conceito da enfermidade, atualmente considerada mais como síndrome – conjunto de sinais e sintomas – do que como doença. Embora apresente critérios diagnósticos bem definidos, como perda de contato com a realidade e alterações da senso-percepção, do ponto de vista sintomático pode haver grande variabilidade entre pacientes. “Estudos sobre sua fisiopatologia não oferecem alterações que sejam patognomônicas, isto é, que estejam presentes em todos os pacientes. Uma alteração genética bem documentada em uma família pode não se reproduzir em outros pacientes”, exemplifica. Como o conhecimento da biologia das doenças mentais ainda é limitado, persiste a prática de classificação quase exclusivamente com base em sintomas e sinais. Contudo, biologicamente, podem existir importantes variações que resultam em sintomas parecidos ou sobrepostos, que fazem com que sejam classificadas como iguais pessoas que têm diferentes alterações biológicas. O próprio avanço do tratamento – sobretudo o farmacológico – depende de uma compreensão mais profunda do que seja a esquizofrenia em termos neurobiológicos. “É isso o que a pesquisa tem buscado: compreender melhor a esquizofrenia, para possibilitar melhores tratamentos”, diz o professor. Percepção “Isso decorre da liberação excessiva de dopamina, neurotransmissor que ‘carimba’ as situações, definindo as que são importantes”, explica João Vinícius Salgado, ao acrescentar que a partir dessas alterações perceptivas o paciente tem delírios e alucinações, sendo estas consideradas como “saliência indevida ao próprio pensamento”. Já na fase crônica ocorrem outras disfunções que prejudicam a atenção. Para compor a mesa-redonda Percepções em esquizofrenia, João Vinícius Salgado convidou os professores Guy Sandner, da Universidade Louis Pasteur (França), que abordará o tema Modelo experimental de alterações perceptivas na esquizofrenia; e João Paulo Machado de Souza (USP-Ribeirão Preto), que vai tratar da Percepção de emoções faciais em pacientes com esquizofrenia. Já a mestranda Keliane de Oliveira, do Programa de Pós-graduação em Neurociências da UFMG, vai falar sobre sua pesquisa Percepção do estigma na esquizofrenia. Sob a orientação de Salgado, Keliane de Oliveira investiga o estigma, que é, segundo ela, um dos aspectos que dificultam a interação e o desempenho de papeis sociais por pessoas com esquizofrenia. Em entrevista ao Portal UFMG, João Vinícius Salgado fala sobre as características da esquizofrenia e o estágio da pesquisa mundial sobre o tema. Professor adjunto do Departamento de Morfologia do Instituto de Ciências Biológicas (ICB), Salgado é preceptor da Residência Médica em Psiquiatria no Instituto Raul Soares (Fhemig). Com experiência na área de neurociências e psiquiatria, atua principalmente nos temas cognição, esquizofrenia, modelos experimentais, neuropsicologia, aspectos psiquiátricos da epilepsia e psiquiatria clínica. Existe uma idade para manifestação da doença? Por que nessa idade? Já é possível entender as causas da esquizofrenia? Existem níveis ou graus de manifestação da esquizofrenia? E o tratamento? A pesquisa também abrange o estigma de que são alvo os pacientes? (Ana Rita Araújo)
O crescente volume de informações gerado a cada ano pelas pesquisas sobre esquizofrenia – tida como a mais grave das doenças mentais – traz ao mesmo tempo esperanças e desapontamento. “Quanto mais se estuda, mais se descobre que estamos lidando com algo muito complexo, que não se limita a alterações em redes neuronais”, comenta o professor João Vinícius Salgado, que coordena mesa-redonda sobre o tema, neste sábado, 29, às 8h, no 6º Simpósio de Neurociências da UFMG.
Outro campo em que a pesquisa tem avançado é o das complexas alterações perceptivas na esquizofrenia. Na fase aguda da doença, parece ocorrer uma redução do chamado filtro sensorial. Em consequência, em vez de privilegiar a informação mais relevante de determinada situação, o paciente atribui importância indevida a estímulos neutros.
O que é a esquizofrenia e qual sua prevalência no mundo?
A esquizofrenia é talvez a mais grave das doenças mentais e tem uma prevalência muito alta: em torno de 1% da população mundial, percentual estável em todas as culturas. A doença é caracterizada pela psicose, ou perda de contato com a realidade; delírios, que são crenças falsas; alucinações (especialmente auditivas); e desorganização do comportamento. Esses seriam os sintomas psicóticos, ou positivos, que foram muito valorizados no século passado, porque são os que mais chamam a atenção e preocupam os familiares. Nas últimas décadas, também têm sido dada ênfase aos sintomas negativos, assim chamados porque se caracterizam pela falta ou deficiência de alguma coisa. No caso da esquizofrenia seria, por exemplo, a falta ou redução do afeto. Eles têm também anedonia, dificuldade de sentir prazer, pouca interação social, discurso pobre. Tudo isso faz com eles fiquem mais isolados e tenham maior dificuldade de levar a vida.
E mais recentemente tem surgido uma ênfase no que chamamos de prejuízo cognitivo, que tem sido encarado como um terceiro domínio da esquizofrenia. Seria o prejuízo da atenção, da memória, da capacidade de abstração e de planejamento.
Os primeiros – sintomas psicóticos – chamam mais a atenção, mas os dois últimos, que eram pouco considerados, são os maiores responsáveis pela determinação da qualidade de vida dos pacientes.
A esquizofrenia aparece na segunda ou terceira década de vida. Nos homens, aparece tipicamente dos 15 aos 25 anos, e dos 25 aos 35 anos nas mulheres. Não se sabe ao certo, mas parece que as mulheres têm algum fator de proteção – além de aparecer mais tarde os sintomas costumam ser mais brandos.
Isso não está claro, embora as pesquisas tenham avançado bastante nesse sentido. Têm sido estudados alguns modelos experimentais, inclusive em animais de laboratório, que fornecem pistas bastante interessantes. A palestra do professor Guy Sandner, da Universidade Louis Pasteur, vai abordar um pouco isso.
Provavelmente existe um componente genético que explicaria 50% da predisposição para a doença – esse dado vem de estudos com gêmeos univitelinos, nos quais se um desenvolve a esquizofrenia, o outro tem 50% de chance de ter a doença. Mas a genética não explica tudo, senão seriam 100%. O que se sabe hoje é que possivelmente fatores ambientais vão se somando desde o período gestacional, a época do parto, a primeira infância, até a eclosão da doença.
Sim, esse é um aspecto muito importante e está relacionado com o estigma.
Embora ainda não conste nos manuais diagnósticos, trabalha-se a ideia de espectro, assim como para a maioria das doenças mentais. Há um continuum que vai desde a pessoa que não tem qualquer traço até um portador grave. A população toda estaria dentro desse espectro – haveria pessoas com traços relacionados à esquizofrenia; outras que já teriam transtorno, mas ainda não seriam consideradas esquizofrênicas como os portadores de personalidades esquizotípicas, esquizoides, paranoides, que clinicamente são formas abrandadas, que não têm sintomas suficientes para serem classificadas na esquizofrenia.
Nos anos 50, houve um grande avanço, porque apareceram as medicações neurolépticas e antipsicóticas, que resolveram em boa parte o tratamento dos sintomas positivos (psicóticos). Cerca de 70% desses sintomas respondem bem às medicações. Porém, até hoje não há tratamento satisfatório para os sintomas negativos, que são os que mais impactam o paciente.
Há a necessidade de avançar nesse campo. Só que o avanço do tratamento, principalmente o famacológico, depende da compreensão do que é a esquizofrenia em termos neurobiológicos, ou seja, quais as alterações que ocorrem nos genes, neurônios e neurotransmissores. E é isso que a pesquisa tem buscado: compreender melhor a esquizofrenia, para possibilitar melhores tratamentos.
Quando a neurociência começou a lidar com o tema de forma mais direta foi ficando cada vez mais evidente que a esquizofrenia, ao contrário do que se considerava, não é propriamente uma doença, no sentido categorial do termo. Isso porque, do ponto de vista neurobiológico, acredita-se que a esquizofrenia pode resultar de diferentes alterações que dariam um resultado comum.
Sim, nosso próprio grupo de pesquisa tem trabalhado esse aspecto. O estudo da Keliane, por exemplo, mostra que há grande variabilidade entre os pacientes, mas todos recebem um rótulo de esquizofrenia, e isso gera o estigma, que é particularmente grave nessa doença, talvez a doença mental mais relacionada à ideia que se tem de loucura, eventualmente de violência, de pessoa perigosa, ou de algo que não tem cura. Os pacientes sofrem um impacto muito grande ao receber o diagnóstico e perceber seu estigma. A manifestação dessa discriminação pode reforçar alguns comportamentos do paciente, que vão ser muito deletérios. Um exemplo disso está nos chamados sintomas negativos, que têm um componente biológico que gera menos vontade, menos emoção, por uma questão de neurotransmissores. Mas como saber se esses sintomas às vezes aparecem por causa do componente biológico ou se são produzidos pela experiência de vida do paciente? Ele pode ter menos vontade porque a experiência mostra que ele consegue menos recompensa na vida prática. Assim, o estigma pode reforçar a ideia de que ele é uma pessoa inadequada, não querida, que não vai dar certo, o que reforça os sintomas negativos e cria um ciclo vicioso.
Temos buscado, em nosso grupo de pesquisa, determinar os fatores relacionados à percepção do estigma.