As abordagens da temática indígena na literatura brasileira já duram mais de meio milênio, perpassando as grandes escolas literárias, como o barroco, o arcadismo e o romantismo: mas remontam até o quinhentismo, e alcançam, na contemporaneidade, nomes como Manoel de Barros e Milton Hatoum. Nesse sentido, a análise crítica e acadêmica sobre a formação da literatura nacional passa inevitavelmente pela cultura indígena e seus mitos. No século 20, parte significativa dessa reflexão se deu sob a perspectiva do indigenismo literário, conceito que abrange estudos sobre a forma como o escritor branco ocidental aborda a figura do índio. Trata-se, sobretudo, de uma crítica ao olhar – não raro alegórico e estereotipado – lançado sobre o indígena e seu universo. Ainda hoje essa vertente é mobilizada para o estudo da vasta linhagem de escritores que assumiu o índio como referência fundamental na construção de sua literatura – mas a academia já se mobiliza para problematizar, delinear e transcender as limitações dessa abordagem. É nessa vertente que surge a tese A cobra e os poetas: uma mirada selvagem na literatura brasileira, recentemente defendida na Faculdade de Letras (Fale) por Mário Geraldo Rocha da Fonseca. O estudo motivou matéria na edição 1829 do Boletim, que pode ser acessada aqui. Em sua tese, Mário cria um conceito literário para melhor compreender a literatura brasileira de temática indígena. O pesquisador elege a figura de um animal selvagem – a cobra – e tudo o que ele representa no mundo indígena para propor a tese da “escrita ofídica”: a escrita literária de uma linhagem de escritores brasileiros que, em suas produções, se relacionaram com o mito indígena. “Penso que na medida em que os escritores se apropriaram do mito, eles foram contaminados pelo jeito dos índios de fazer literatura, de escrever seus mitos. É essa escrita influenciada pelo mito indígena que chamo de escrita ofídica”, diz. Para Fonseca, o “olhar da cobra” consiste em uma “mirada selvagem”, que pode ampliar a compreensão histórica desses escritores. “No meu trabalho, a cobra é um conceito teórico, mas é também personagem e referência do espaço territorial amazônico. Uso o termo para sugerir nova reflexão, não mais moldada pelo indigenismo literário, mas pelo olhar que emerge da literatura indígena, em que os próprios índios sistematizam seus mitos. O surgimento dessas literaturas extraocidentais está possibilitando toda uma nova problematização das abordagens feitas pelo homem branco do mito indígena”, analisa. Em entrevista, o pesquisador detalha para o Portal UFMG o conceito que criou. Por que propor um novo conceito para ler a literatura de temática indígena? Hoje estão surgindo os chamados “livros da floresta”, nos quais os índios escrevem seus mitos, que antes só faziam parte do mundo da oralidade. O que ajuda a melhor compreender a invenção de um português a partir das línguas nativas do Brasil é justamente esse aparecimento de uma literatura propriamente indígena; não indigenista, mas indígena, de fato produzida pelos índios. O cenário é novo, e demanda novas ferramentas para ser bem explorado. A reflexão que surge daí é típica de um tempo em que as teorizações da literatura buscam superar a clássica polarização entre mito e realidade. Como se dá essa polarização? Detalhe como, no caso dos índios, essa relação com o real se dá. E por que a cobra, especificamente, para ilustrar esse conceito? Como você chega ao conceito? E como podemos conceituar a cobra? A cobra é o devir? Toda essa conceituação nos ajuda a pensar a literatura contemporânea como uma ânsia de criar uma nova realidade sem sair da realidade, se dobrando sobre si mesma. De ser não mais uma representação da coisa, mas sim a própria coisa. Da possibilidade de ser algo novo e de também não sê-lo. A literatura como possibilidade; como potência. Tese: A cobra e os poetas: uma mirada selvagem na literatura brasileira (Ewerton Martins Ribeiro)
Foca Lisboa/UFMG
Porque existe uma leitura dominante do cânone literário indigenista da qual eu precisava me desviar; não refutar, mas desviar. A leitura de que falo é a que dá voz a uma certa utopia de alguns escritores em seu intuito de colher uma língua junto aos índios como forma de defender uma língua brasileira, mais “autêntica”, nativa, um português puramente brasileiro. A mim, o que interessa no aspecto linguístico, por exemplo, não é nem o português nem a língua nativa dos índios, mas sim a invenção que esses escritores fizeram de uma terceira língua.
O que se está problematizando, de forma ampla, é a literatura como um todo; a antiga contraposição ocidental entre invenção e verdade. O conceito de autoficção, muito em voga na literatura contemporânea, tem a ver com essa visão. O debate, agora, transcende essa polarização, pondo em crise o antigo sistema de representação que separava ficção e verdade. E a chegada dessas literaturas extraocidentais colabora para essa problematização. A literatura indígena entra justamente aí. Para os índios, o mito é real. Não se trata exatamente do que nós chamamos de realidade, mas sim de uma relação antropológica do humano com os demais seres que estão na realidade. Daí a importância de um novo conceito que seja capaz de lançar luz sobre essas questões sem desqualificar o sentido da ficção ocidental – mas também indo além de dizer que ficção é uma coisa e realidade é outra. A leitura que eu faço dos mitos indígenas parte daí. A imbricação entre ficção e verdade é a maneira que os índios sempre tiveram de lidar com o incrível poder determinante da natureza.
Ao criar seus mitos, os índios estão inventando uma maneira de lidar com o real. E essa invenção é necessária para que eles possam viver o real. Se tomamos “o real” como o imenso poder da natureza, e pensamos especificamente no caso dos índios da Amazônia, vemos aí alguma coisa de imponderável. Então surge essa figuração da cobra; é um recurso para darmos conta de falar disso. A cobra é desvio, assim como o mito, desvio que é fruto da inventividade humana, da criatividade humana, para lidar com o poder da natureza, para lidar com o poder das maravilhosas coisas que estão para além do nosso controle.
Eu poderia ter optado por outros animais, como o papagaio, a onça, a tucandeira, também interessantes para isso. Mas fiz a escolha de um determinante imaginário. A cobra é muito forte, um dos animais mais fortes do imaginário caboclo e indígena. E há também a justificativa geográfica. Quando eu fiz a minha primeira viagem de avião, da minha cidade no interior do Amazonas para a capital, eu pude ter noção da importância e da beleza do mito da cobra grande na Amazônia. Aquela paisagem fulgurante de verde e os rios atravessando a floresta como se fossem uma imensa cobra. O mapa da Amazônia é ofídico. E um dos personagens mais comuns no mito amazônico é a cobra, que inclusive interessou muito aos escritores indigenistas, sobretudo os modernistas.
Uma das noções que uso para compor a cobra, e que é forte na teoria literária contemporânea, é a de “desvio”. Mas eu me desvio até desse próprio desvio, pois ele é formalista, e se dá sempre em relação a alguma norma; um desvio da língua padrão, por exemplo. O meu desvio não diz respeito à norma. O meu desvio é uma perspectiva. A pedra no meio do caminho de Carlos Drummond de Andrade, forte marco do modernismo, é um exemplo disso. Drummond está batendo na pedra, querendo de toda maneira enfrentá-la. O desvio de que eu falo não nega a existência da pedra, mas desvia-se dela. E segue o caminho. Ele não está querendo destruir a norma. Quer é construir um novo caminho; inventá-lo. A palavra invenção, portanto, é chave. Penso que quando os românticos e os modernos se apropriaram dos mitos indígenas, o que eles fizeram foi uma invenção. E que tipo de invenção é essa? Uma invenção que cria um novo mito a partir do mito indígena do qual eles se apropriaram. Mas minha preocupação não é saber o que os escritores fizeram com o mito indígena ao se apropriarem dele, mas sim o que o mito fez com eles no transcorrer dessa apropriação.
De certa forma, ela dialoga com o conceito de devir; o devir como uma invenção que a gente faz para lidar com as mudanças. Penso no devir naquela perspectiva que vem de Nietzsche e passa por Deleuze, Derrida, Foucault. Para Deleuze, por exemplo, o devir não é só o tempo em movimento, as mudanças claramente vistas; é a relação humana com essa mudança. E, para lidar com essa mudança, você vai ser chamado a criar alguns elementos de permanência. Heráclito dizia que tudo muda, mas, para que tudo mude, há algo que não muda. E o que é isso que não muda? A própria mudança. O conceito de devir tem a ver com esse diálogo, de uma coisa que está sempre em transformação, e que a gente, para lidar, tende a criar alguma permanência, alguma estabilidade. O devir toca nesse ponto, na invenção dessa estabilidade. É interessante perceber como a imagem da cobra, um animal anfíbio, que transita por todos os reinos da natureza, e que está sempre em mudança (inclusive de pele), abrange tudo isso. O procedimento da metamorfose está muito presente no mito indígena. Os seres e o espaço estão sempre mudando, sempre em movimento. O espaço amazônico é um exemplo disso, por conta da força da água, que desloca até mesmo as coisas que se acredita serem mais estáveis, como o próprio terreno nos quais se constrói as casas e as árvores nascem. Num período, existe uma ilha em um determinado lugar; depois ela já está em outro: as margens dos rios estão sempre desenhando um traçado novo.
Sim. O devir que dialoga com conceitos como “potência”, assim como trabalhado por Nietzsche, entre outros, e retomado por Giorgio Agamben. Ambos, assim como os conceitos de “devir” dos formalistas russos e franceses, de “fora” (de Maurice Blanchot) e de “dobra” (de Deleuze) ajudam a dar conta desta perspectiva que chamo de ofídica. Agamben transcende a ideia de potência como algo que só existe como uma etapa para que o ato possa existir; ele faz um desvio da relação potência/ato para problematizar a relação potência/potência. Para o filósofo italiano, algo tem mais potência justamente por também possui o poder de não ser ato.
Autor: Mário Geraldo Rocha da Fonseca
Defesa: maio de 2013
Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários – Literatura Comparada.
Orientadora: professora Maria Inês de Almeida