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Nº 1831 - Ano 39
12.08.2013

Cobra criada

Tese de doutorado da Fale lança novo olhar sobre a literatura de temática indígena

Ewerton Martins Ribeiro

A análise crítica e acadêmica sobre a formação da literatura brasileira passa pela cultura indígena e seus mitos. No século 20, parte significativa dessa reflexão se deu sob a perspectiva do indigenismo literário, conceito que abrange estudos sobre a forma como o escritor branco ocidental aborda a figura do índio. Trata-se, sobretudo, de uma crítica ao olhar – não raro alegórico e estereotipado – lançado sobre o indígena e seu universo.

Ainda hoje essa vertente é mobilizada para o estudo da vasta linhagem de escritores que assumiu o índio como referência fundamental na construção de sua literatura.

Com o intuito de problematizar, delinear e transcender as limitações dessa abordagem, o pesquisador Mário Geraldo Rocha da Fonseca desenvolveu a tese A cobra e os poetas: uma mirada selvagem na literatura brasileira, recentemente defendida na Faculdade de Letras (Fale). O estudo cria um conceito literário para melhor compreender a literatura brasileira de temática indígena.

O trabalho parte da premissa de que os escritores brasileiros se aproximaram do mito indígena para viabilizar a própria existência de suas literaturas. E que a forma dessa aproximação foi fundamental para definir o que se passou a chamar “literatura brasileira” a partir de então. Partindo desta observação, o pesquisador elege a figura de um animal selvagem – a cobra – e tudo o que ela representa no mundo indígena para propor a tese da escrita ofídica.

Para Fonseca, o “olhar da cobra” consiste em uma “mirada selvagem”, que pode ampliar a compreensão histórica desses escritores. “No meu trabalho, a cobra é um conceito teórico, mas também personagem e referência do espaço territorial amazônico. Uso o termo para sugerir nova reflexão, não mais moldada pelo indigenismo literário, mas pelo olhar que emerge da literatura indígena”.

Como conceito, a cobra da tese se aproxima das ideias de devir – sobretudo em seu aspecto de recurso humano para a compreensão da constante mudança – e de potência criativa. “Na paisagem amazônica, tudo muda ou pode mudar o tempo todo, tudo está em movimento e transformação”, argumenta Fonseca. Segundo o pesquisador, natural do estado do Amazonas, o animal é também um personagem reincidente na literatura de temática indígena. “O mito da ‘cobra grande’ é um dos mais fortes na região. E há ainda a justificativa geográfica: na floresta, os rios, quando vistos do alto, desenham cobras imensas por entre a vegetação. O mapa da Amazônia é ofídico”, compara

Outro protagonismo

A tese de Mário Geraldo Fonseca chama de escrita ofídica aquela que se apropriou do mito indígena e foi contaminada pelo modo dos índios de contar seus mitos. “Durante muito tempo, esse processo se restringiu à oralidade, mas agora estamos vendo emergir a literatura indígena, em que os próprios índios sistematizam seus mitos”, conta. “O surgimento dessas literaturas extraocidentais está possibilitando nova problematização das abordagens feitas pelo homem branco do mito indígena”, analisa. A reflexão que surge daí é típica de um tempo em que a academia busca superar a clássica polarização entre mito e realidade. “O que se está problematizando, de forma ampla, é a antiga contraposição ocidental entre invenção e verdade. O conceito de autoficção, muito em voga na literatura contemporânea, tem a ver com essa visão. O debate, agora, transcende a polarização entre ficção e verdade, pondo em crise o antigo sistema de representação”, diz.

No tocante à literatura indígena, colabora para o desenvolvimento dessa nova abordagem crítica e acadêmica a recente consolidação de ferramentas da teoria literária contemporânea, capazes de instrumentalizar esse novo olhar. “Eu, por exemplo, me valho de uma releitura do conceito formalista de ‘desvio’ para contornar essa crítica tradicional e pensar o cânone por essa outra perspectiva”, explica Fonseca. “Em vez de saber o que os escritores fizeram com o mito, quero saber o que o mito fez com eles”, provoca.

Na visão de Fonseca, quando um escritor se apropria dos mitos indígenas para a sua produção, o que resulta desse trabalho é uma “invenção de outro mito, agora de elaboração literária, mas que mantém forte ligação com o mito indígena”.

Tese: A cobra e os poetas: uma mirada selvagem na literatura brasileira
Autor: Mário Geraldo Rocha da Fonseca
Defesa: maio de 2013
Curso: Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários - Literatura Comparada.
Orientadora: professora Maria Inês de Almeida