(Matheus Espíndola)Em muitas reflexões publicadas ao longo de sua trajetória como pesquisador, o professor Marcelino Rodrigues [em foto de Sarah Dutra], da Faculdade de Letras da UFMG, investe na ideia de que o futebol dá origem a inúmeros discursos nos quais se constroem e se cristalizam seus significados na cultura brasileira. “Muito mais do que um esporte, o futebol é um espetáculo e motiva enorme produção cultural, que passa pela literatura, música, artes plásticas, jornalismo e uma infinidade de campos”, detalha.
Nesta quarta-feira, 18, durante o 1º Simpósio internacional futebol, linguagem, artes, cultura e lazer, ele apresenta o trabalho Futebol e modernismo, que trata da interpretação de crônicas, charges, romances e outras manifestações sobre o esporte pelo viés do movimento modernista – cujo marco inaugural foi a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo. “Meu atual projeto investiga o que foi escrito sobre futebol na ficção do modernismo; e, por outro lado, o que escritores do futebol absorveram dos modernistas”, resume.
O conceito de antropofagia, ou seja, a “devoração” e transformação do legado europeu em algo brasileiro, é um dos preceitos da corrente modernista que se fundem com a evolução do futebol no Brasil. “Pegamos o esporte bretão (inglês) e o transformamos em uma das mais significativas expressões da identidade nacional”, ilustra o professor.
Segundo ele, o modernismo incentivou a legitimação e valorização de expressões da arte popular e fez com que estas passassem a constituir material de trabalho dos homens de letras. O futebol foi parte importante desse processo.
Nesse sentido, a exaltação da linguagem popular nos produtos artísticos se configurou como característica comum entre os escritores do futebol e os modernistas. “Mario Filho [principal referência da crônica esportiva no Brasil] certa vez contou que se inspirava em conversas de botequim com sambistas, lutadores de boxe e jogadores de futebol. Ele recorria à linguagem do povo, o que tem tudo a ver com o que os modernistas pretendiam na literatura”, exemplifica Marcelino.
Coincidência temporal também é observada, de acordo com o pesquisador, entre os cursos do modernismo e do futebol. A série de movimentos que eclodiram a partir da Semana de 22 teve desdobramentos que atravessaram a década seguinte – quando também foram realizadas as primeiras Copas do Mundo e se consolidava o futebol no Brasil.
Por tudo isso, os artistas que abordaram o futebol sem as “supostas amarras da objetividade jornalística” deram significação social ao esporte, o que justifica a investigação sobre o papel de poetas, cronistas, romancistas e artistas plásticos nesse fenômeno.
Legado de um chargista
O futebol como fenômeno de produção de sentidos foi o tema da dissertação de mestrado defendida por Marcelino em 1997, com o título O mundo do futebol nas crônicas de Nelson Rodrigues. Já em 2003, ele concluiu o doutorado com a tese que resultou no livro Mil e uma noites de futebol: O Brasil moderno de Mário Filho, publicado pela Editora UFMG em 2006. Sua pesquisa de pós-doutorado, em 2008-2009, abordou a história e os significados da rivalidade entre as torcidas de Cruzeiro e Atlético, ambos de Belo Horizonte.
Durante o andamento desta última pesquisa, Marcelino se interessou pelo legado do chargista Fernando Pieruccetti, o inventor das mascotes dos três grandes times da capital mineira, com atuação importante no desenvolvimento da cena modernista em Belo Horizonte, na década de 1930.
A associação de Cruzeiro, Atlético e América com a raposa, o galo e o coelho, respectivamente, alinhou-se com a proposta da corrente modernista de resgatar elementos da cultura brasileira – nesse caso, a fauna – em detrimento de similares estrangeiros. À época, personagens norte-americanos como o Pato Donald costumavam ser protagonistas de tirinhas sobre o futebol brasileiro.
Foi a partir de indícios como esse que o pesquisador formulou sua hipótese. “Nas próprias charges futebolísticas do Pieruccetti, o desenho é aberto, inacabado, com traços da arte modernista”, compara.
Mercantilização e recusa do mito político
De 1922 até os dias atuais, muita coisa mudou em relação à afirmação do futebol como referência identitária nacional. A globalização do esporte, aliada à sua vinculação com a publicidade, teria, para Marcelino, minado a “mitologia” que costumava se configurar no imaginário popular. “Os jogadores que se destacam são exportados e com isso não constroem identidade com o clube brasileiro. Não temos mais times que se tornam clássicos”, observa.
O pesquisador argumenta que nas primeiras décadas do século passado a paixão futebolística expressava a história da emergência do popular no Brasil, ao contrário do que ocorre nos dias atuais. “O ato de torcer, no qual antes se via uma aspiração à cidadania, é agora um ato de consumo da cultura global.”
Ele analisa que essa transformação foi explicitada no episódio dos protestos populares ocorridos em todo o país durante a Copa das Confederações, em junho. Para Marcelino, a juventude brasileira manifestou recusa àquilo que os políticos tentam nos impingir usando o futebol como fachada. Ele sinaliza que o futebol, embora ainda seja reconhecido como paixão nacional, teve extinta sua validade como mito político. “O projeto de Brasil que os modernistas ajudaram a elaborar, e que acabou se refletindo em determinada linha política, já não é mais convincente. Não queremos ser apenas o país do futebol”, finaliza.