A obstrução de vasos sanguíneos e consequente restrição no fluxo de sangue, crises de dor e alteração em vários órgãos do corpo, também conhecida como crise vaso-oclusiva, são complicações comuns em decorrência da anemia falciforme, doença genética caraterizada pela presença de um tipo alterado de hemoglobina no sangue. Quando os vasos do cérebro são atingidos, um dos agravos é o acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico, que pode levar a sequelas neurológicas graves e até a morte. O doppler transcraniano, exame de ultrassom que mede a velocidade do sangue nas principais artérias do órgão, é capaz de detectar o risco de ocorrência do AVC, também conhecido como derrame ou isquemia cerebral. “É um exame simples e indolor, feito em ambulatório, que mostra, em tempo real, se existe alguma alteração no fluxo sanguíneo cerebral”, explica a hematologista Célia Maria Silva, do Centro de Educação e Apoio para Hemoglobinopatias (Cehmob-MG), parceria entre o Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico da Faculdade de Medicina da UFMG (Nupad) e a Fundação Hemominas. “Na doença falciforme, o AVC isquêmico ocorre com maior frequência nas duas primeiras décadas de vida, período em que o exame do doppler transcraniano deve ser feito anualmente, para detecção de risco desse evento”, observa Célia. Doppler e prevenção Segundo a médica, caso a velocidade do sangue esteja muito alta, o que ocorre em 8% das crianças com doença falciforme, devido ao estreitamento ou mesmo à obstrução das artérias do cérebro, o diagnóstico é de alto risco para o AVC: “Se essa velocidade se mantiver elevada, a recomendação é que o paciente seja colocado em regime de transfusão sanguínea regular”. As transfusões reduzem o nível da hemoglobina alterada no sangue e aumentam a concentração da hemoglobina normal. “Estudos realizados nos EUA e na França apontam que essa medida reduz em até 92% o risco de a criança sofrer um AVC”, explica a hematologista. Os exames do doppler transcraniano mostram que cerca de 80% das crianças com doença falciforme apresentam risco baixo de desenvolver o AVC, devendo ser acompanhadas regularmente. Para aquelas que “estacionam” no risco considerado médio, aproximadamente 22%, além dos exames regulares do doppler, pode-se optar pelo uso de medicamentos. “Sabemos que menores de dois anos também correm o risco do AVC em decorrência da doença falciforme, mas como o exame precisa ser feito com o paciente acordado e cooperativo, crianças muito pequenas podem ficar agitadas e dificultar o procedimento”, aponta Célia. Porém, segundo ela, crianças nessa faixa etária que apresentam maior risco, como crises de dor e síndrome torácica aguda mais frequentes, além da história de AVC em irmão, também devem passar pelo exame antes dos dois anos. Transplante Nessas situações, uma das estratégias possíveis é o transplante de medula óssea, única capaz de reverter o quadro da doença falciforme. Idealmente, o transplante deve ser realizado em casos selecionados, após avaliação criteriosa da equipe médica. Um dos requisitos é que o paciente possua irmão compatível. “Acompanhei dois casos. Em um deles, uma paciente de oito anos, do Programa Estadual de Triagem Neonatal, possuía risco elevado de sofrer o AVC”, conta Célia. “Apesar das transfusões, o risco apontado pelo doppler permanecia alto. Optamos pelo transplante e hoje, dois anos após a cirurgia, a criança está ótima, com nível normal de hemoglobina e sem qualquer sintoma clínico”, declara. Segundo ela, outro paciente, de 16 anos, após sofrer o primeiro AVC e não mostrar melhora com as transfusões, também foi transplantado e hoje está muito bem. Atualmente, o transplante de medula óssea para a pessoa com doença falciforme já é liberado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A portaria que autoriza o procedimento para os casos indicados pela Sociedade Brasileira de Transplante de Medula Óssea encontra-se em fase de regulamentação. Entenda a doença (Assessoria de Comunicação da Faculdade de Medicina)
Como explica a hematologista, apesar das medidas terapêuticas para se evitar o AVC isquêmico, algumas crianças não apresentam melhora no quadro das complicações cerebrais: “Em 10% ou mais dos casos, as transfusões não são efetivas”, aponta.
Na doença falciforme, a presença da hemoglobina alterada faz com que as hemácias, ou glóbulos vermelhos, deixem de ser flexíveis e arredondadas e se tornem mais rígidas, adquirindo o formato de foice (daí o nome falciforme), o que faz com sejam destruídas mais precocemente. Nessa situação, elas tendem a se ligar aos vasos sanguíneos e a outras células sanguíneas, levando a fenômenos inflamatórios e vaso-oclusivos.