Sarah Dutra/UFMG |
O romance latino-americano não tem pátria: ele é transnacional, transatlântico. "E isso torna impossível estabelecer uma exata cartografia do que está ocorrendo na nossa literatura na contemporaneidade.” Quem defende esta posição é o ensaísta, poeta e romancista peruano Julio Ortega, um dos mais importantes críticos literários da América Latina. Recentemente, o professor da Universidade Brown (EUA) esteve na UFMG para uma conferência na Escola de Ciência da Informação (ECI) sobre a história intelectual da construção nacional hispano-americana. Ortega dirige o Projeto Transatlântico, da Universidade Brown, que fomenta reflexões sobre a história cultural de América Latina, Espanha e Estados Unidos, a partir da relação entre esses territórios. O ensaísta também ministrou a aula inaugural deste semestre do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários (Pós-Lit) da Faculdade de Letras (Fale) da UFMG. Sob o mote De Cervantes a García Márquez: Una poética de la lectura transatlántica, Ortega apontou que o romance latino-americano contemporâneo ainda se mostra muito distinto internamente, seja entre autores, seja entre nacionalidades, o que colabora para dificultar sua cartografia. “Trata-se de uma literatura que não está focada nos tempos passados, e sim que propõe um diálogo comprometido com o futuro”, defende o professor. Em sua aula, Ortega abordou a literatura latino e hispano-americana desde a sua fundação, com O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, até a publicação de um marco mais recente de tal trajetória, Cem anos de solidão, obra-prima de Gabriel García Márquez. Em entrevista ao Portal UFMG, Julio Ortega oferece considerações sobre os mais diversos assuntos do campo da literatura, como o cenário dos estudos literários no Brasil, a utilidade e não utilidade da literatura no mundo contemporâneo, os processos, princípios e a liberdade do ato de leitura e a importância do pacto ficcional para a fruição literária. A seguir uma síntese das ideias expostas pelo professor Ortega. Política e a utilidade da literatura Sobre a leitura Princípios da leitura Pacto ficcional Literatura contemporânea Literatura brasileira (Ewerton Martins Ribeiro e Sarah Dutra)
A dimensão política da literatura latino-americana segue muito forte. É uma função crítica, uma função, diríamos, que abre espaços, que se liga em cadeia com outros cenários, propondo ao leitor um diálogo que se compromete com o futuro. É uma literatura que não está focada nos tempos passados. Toda a literatura da América Latina pensa o tempo todo no futuro. Já não nos interessa fazer uma genealogia de onde vêm as coisas. Interessa-nos para onde vamos, os cenários que se abrem. Isso é o que fazem os jovens e todos os que escrevem sobre as novas tendências, formas, espaços, as comunidades em mudança. Há toda uma condição transicional da literatura que está aberta, favorecida. Mas a literatura é um tipo de linguagem que não é prática, útil. Ela pertence à dimensão do jogo; é uma linguagem de jogo. O que transforma o mundo é a nossa linguagem utilitária, a nossa linguagem prática. Pode ser que um romance transforme uma pessoa e, por consequência, o mundo. Mas esta não é a sua intenção.
Temos Dom Quixote como o primeiro romance moderno em espanhol. O fenômeno que esse romance moderno postulou é o de que cada leitor é único. De que cada leitor é diferente dos demais. Que não existem duas leituras iguais, que cada leitura é absolutamente pessoal e que ninguém está errado em seu modo de ler. Pode haver uma leitura mais formal, outra menos formal; todas, no entanto, são válidas. Quando o leitor lê Miguel de Cervantes, Gabriel García Márquez ou Guimarães Rosa produz-se um fenômeno único: a visão, mais próxima do cérebro, entra em contato com a linguagem escrita e gera um desencadeamento químico, um processo de informação que cada um de nós processa de forma diferente. Quando lerem ou relerem livros como Dom Quixote ou Cem anos de solidão, sintam-se livres para acreditar no que quiserem. Não existe uma leitura mais autorizada que outra, uma leitura melhor que outra.
Mas há dois “princípios da leitura”. O primeiro diz que a leitura deve ser pertinente. Dito de outra forma: a nossa leitura tem de estar situada no cenário proposto pelo texto. Quando leio sobre um lugar que se chama Mancha, não posso dizer: “Ah, sim! Isso remete ao sabão Ace, que tira todas as manchas!”. Aí não. Porque essa leitura seria impertinente. Podemos ler o que quisermos – mas dentro desse pacto de leitura. O outro princípio é o da produtividade: nossa leitura tem de levar a algo mais. Quixote não tem de ser idêntico a mim. Isso não seria produtivo. Mais produtivo é pensar em um Quixote diferente de nós, mas, que ao final, poderia ter uma vida que tivesse algo de nosso; ou que algo de nosso poderia ser “quixotesco”. Essa é a produtividade da leitura.
Representação de Dom Quixote e Sancho Pança feita por Gustave Doré, em 1.863
Esse pacto de leitura de que falei é a superstição de uma credibilidade. Temos de acreditar que aquilo que está no livro é possível; do contrário, fecha-se o livro e acaba a literatura. Temos de acreditar que, em algum lugar de La Mancha, nasceu alguém chamado Dom Quixote. Ou fazer com que acreditemos que acreditamos. Esse é o teatro da leitura: o fato de que, por trás de uma leitura, há sempre outra leitura. Há uma genealogia da leitura que, devidamente pesquisada, resulta em uma biografia de leitores. Se fizéssemos a nossa biografia em nossos currículos, teríamos o seguinte: “1995: leu Cem anos de solidão; 2000: leu Grande Sertão: Veredas”. Esta seria a verdadeira biografia, porque assim se faria um verdadeiro retrato da pessoa, um retrato criativo. Somos os livros que já lemos. Claro que algumas pessoas são os livros que não leram. Um alerta: nunca se case com uma pessoa que nunca leu um livro. É perigoso.
Hoje o romance está se beneficiando muito do cenário tecnológico. A tecnologia está influenciando muito a criatividade, a liberdade de formas. Mas é impossível fazer agora uma exata cartografia do que está ocorrendo na nossa literatura na contemporaneidade. Depois do boom do romance latino-americano dos anos 70, há várias novas gerações de narradores nos países hispano-americanos, e no Brasil também, claro – mas que se distinguem não por semelhanças, mas por suas diferenças. Isso acontece provavelmente pela grande liberdade que o gênero romance, como discurso, possibilita. É um discurso menos normativo, menos codificado, mais aberto. E que os jovens têm praticado com muita criatividade. Nesse sentido, temos um romance que não é mais nacional. É pós-nacional, é transnacional; é, sobretudo, transatlântico: um romance produzido em um de nossos países dialoga com os Estados Unidos, interage com a Europa.
No Brasil, especificamente, os espaços culturais têm diminuído muito. Nos jornais, por exemplo, eles estão cada vez mais dedicados ao espetáculo – e já não são o espaço de validação da nova literatura. Outra coisa é que antes havia muitos bons tradutores. Como a geração de Haroldo de Campos e de Décio Pignatari. Eles eram grandes vanguardistas: colocavam a literatura brasileira em contato com os mundos literários o exterior. Hoje, lamentavelmente, não há ninguém ocupando o seu lugar, o que faz a literatura brasileira pouco conhecida fora do Brasil. Faltam-nos comunicação, difusão e maior presença dos escritores nos fóruns internacionais. Por outro lado, o mundo acadêmico brasileiro mudou. Antes era muito nacionalista, excessivamente centrado nos temas locais. Agora é mais aberto, mais latino-americano, mais internacional. E há jovens professores que estão abrindo caminho para a literatura brasileira. Porque não se trata somente de estudar aqui a literatura em espanhol, trata-se também de levar a literatura brasileira para fora. Há também algumas embaixadas brasileiras no mundo que são mais sensíveis à leitura, que trabalham, participam, elaboram materiais sobre o Brasil. De toda forma, ainda que o país tenha uma presença mundial muito forte em muitas áreas, sua cultura ainda não é bem conhecida fora.