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Nº 1859 - Ano 40
14.04.2014

Encarte

As andanças do fidalgo

Professor da Brown University (EUA) analisa as interpretações de Dom Quixote mundo afora

Ewerton Martins Ribeiro e Sarah Dutra

O ensaísta, poeta e romancista peruano Julio Ortega é um dos mais importantes críticos literários da América Latina, o que se deve em larga medida às reflexões sobre as relações entre a literatura e a história das sociedades – especialmente no contexto de América Latina, Espanha e Estados Unidos. Seus estudos são desenvolvidos no âmbito do Projeto Transatlântico da Brown University (EUA).

No mês passado, o ensaísta ministrou a aula inaugural do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários (Pós-Lit) da Faculdade de Letras. Na ocasião, Ortega falou sobre as várias leituras que o romance O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, teve mundo afora. Confira alguns trechos da conferência.

De guia ruim à transformação de gênero

“Pode-se dizer que diferentes países, diferentes culturas, leram de forma diferente o Quixote. Os primeiros leitores foram os ingleses. Eles o tomaram como um guia turístico ruim sobre a Espanha. Os hotéis são muito ruins, há muita poeira, gente ignorante. Come-se muito mal no Quixote. Já os escritores ingleses leram no Quixote uma transformação de gênero, e ficaram fascinados com a liberdade de Cervantes para escrever, misturando coisas, fazendo paródias, juntando tragédia e comédia. Vários desses escritores acabaram assimilando Quixote para escrever a sua própria literatura.”

As gorduras do espanhol

“Em Dom Quixote há uma grande ironia sobre o uso da linguagem na Espanha. A língua espanhola sempre teve a má fama de não ser uma língua moderna sintética. No livro, a imprensa se denomina ‘Aqui se imprimem livros’, perífrase de uma só palavra: imprensa. Cervantes tinha essa consciência antiespanhola, antirretórica, e buscava alcançar outra coisa com a linguagem. Isso me faz pensar que a linguagem é a protagonista do romance, e que a leitura é a dramatização dessa linguagem. Por isso, as leituras de cada nacionalidade são diferentes. Na Espanha o livro foi considerado divertido, um livro sobre um louco – e só. Talvez os piores leitores de Quixote sejam os espanhóis, porque, quando o leem, angustiam-se; sofrem. Pensam que ele é uma espécie de instrumento de identidade espanhola. É uma obra na qual o espanhol se vê em carne viva.”

Melancolia alemã, sofrimento russo, riso latino...

“A leitura da obra na Alemanha é completamente diferente. Os alemães, filosoficamente, inventaram a ideia de Quixote como um tratado da melancolia. Na Alemanha, são vistos quadros populares em que o Quixote está sentado como O pensador, de Rodin, ainda que continue aparecendo como uma figura magra, pouco enérgica, um fanático. Os alemães decidiram que Quixote era um livro triste. E há a leitura dos russos, que é a mais distinta de todas. Os russos são os únicos que choram quando leem o Quixote. [o escritor Vladimir] Nabokov o odiava. Quando ele foi professor em Harvard, deram-lhe a lista de livros obrigatórios que deveria ensinar. Dentre eles, o Quixote. Nabokov disse: ‘Este livro’ – enquanto lançava o volume ao chão – ‘eu jamais ensinarei!’. Para os russos, é o livro mais cruel da história. Nós, latino-americanos, ao lermos o Quixote, rimos. Provavelmente somos os leitores mais modernos da obra; o lemos de uma distância crítica e irônica suficiente para podermos apreciá-lo dessa forma.”

Crueldade e grandeza

“Nas crueldades que Dom Quixote sofre no livro, os russos viam a destruição do outro, a perda do ‘eu’. Trata-se, de fato, de um livro muito cruel. Quando os duques o fazem acreditar que vai acontecer uma coisa mágica, algo excepcional, e tudo é apenas uma montagem. Ou o que fazem com Sancho: inventam que ele é o governador de uma região e é mentira. Mas Harvard obrigou Nabokov a ensinar Quixote. E ele o releu redigindo notas para cada capítulo, escrevendo ele mesmo um livro sobre o Quixote. E terminou pensando nele não mais apenas como um romance cruel, mas como o grande romance que é.”

(Abordagem ampliada da conferência do professor Julio Ortega será publicada esta semana no Portal UFMG, seção ­Pesquisa e Inovação)