A vice-reitora Sandra Goulart Almeida, também professora de literatura na Faculdade de Letras, destaca a projeção internacional que a obra do escritor colombiano trouxe para a América Latina. “Ele pôs a nossa literatura no cenário global, além de ter sido um intelectual que refletiu sobre questões de fundo da região.” A obra de García Márquez estimulou várias reflexões no contexto da pesquisa realizada na UFMG. Em 2007, por exemplo, Keila da Costa e Silva defendeu a dissertação Análise discursiva de 'Notícia de um sequestro', de Gabriel García Márquez: na fronteira entre o jornalismo e a literatura. Ela analisa, sob a ótica da análise do discurso, a composição e os tangenciamentos dos discursos jornalístico e literário. Outro exemplo é a dissertação Transculturação e dialogismo/pátria, nação e memória em 'O outono do patriarca', defendida em 2011 por Michelle Marcia Cobra Torre. No trabalho, a pesquisadora aborda a transculturação narrativa, o dialogismo, a pátria, a nação e a memória nesta obra do escritor colombiano. Entre os estudos em andamento está a tese de doutorado No labirinto da memória: A morte como imagem em 'Cien años de soledad', de Gabriel García Marquez (título provisório), de Suziane Fonseca. Segundo a doutoranda, a pesquisa aborda os espaços de memória e a morte como imagem. "Ao analisar trechos do livro, é possível perceber como a morte está caracterizada como imagem e faz parte do núcleo da narrativa. Por meio de metáforas, García Márquez usa a arte como forma de denúncia política", explica Suziane. Mistura de águas “Ele foi um escritor que se enquadrou, à sua maneira, ao ‘modelo’ que buscava aliar política com produção intelectual e literária”, afirma Adriane Vidal. Segundo ela, García Márquez tornou-se ardoroso defensor do regime cubano e amigo de Fidel Castro em meados dos anos 1970 e defendeu o castrismo e a revolução até o final da vida, mesmo com o autoritarismo, as perseguições e os fuzilamentos perpetrados na Ilha. Ainda naquela época, continua a historiadora, García Márquez redigiu várias crônicas, nas quais abordou a história de Cuba. Grande parte desses escritos — publicados entre 1975 e 1978 na revista Alternativa e no jornal El Espectador — revelou sua veia jornalística e militante e uma narrativa testemunhal, parcial e subjetiva. “García Márquez narrou os acontecimentos utilizando recursos mais próximos da literatura do que de uma linguagem jornalística apressada e enxuta, privilegiando a descrição densa e os detalhes. Podemos afirmar que nessas crônicas as linguagens literária e jornalística misturaram suas águas. O escritor colombiano, na verdade, promoveu uma intertextualidade entre jornalismo, literatura e história”, avalia Adriane Vidal. Entrevista/Sara del Carmen Rojo de la Rosa Tão natural quanto o lençol que voa Novo olhar sobre América Latina Realismo maravilhoso Não entendo que o realismo maravilhoso seja algo que começou com ele, propriamente. Começou muito antes, quando os conquistadores espanhóis e portugueses chegaram à América e, não sabendo ou não entendendo como este mundo funcionava, o leram com os recursos de que dispunham. García Márquez foi capaz de compreender essa leitura e de, a partir disso, produzir uma literatura diferente. Mas o contexto já existia. O que ele fez foi perceber isso e possibilitar a criação desse novo olhar para a realidade e para este mundo, no sentido da criação de mundos novos.” Influências ‘Literatura total’ Obras de referência (Ewerton Martins Ribeiro. Colaboração: Ana Rita Araújo e Paulo Henrique Mauro) O escritor colombiano Gabriel García Márquez, morto na última quinta-feira, dia 17, criou um estilo marcante, reconhecido de imediato pelo leitor. “Uma de suas marcas é a junção dos modelos literários com as narrativas orais, baseadas em conversas do escritor com seus parentes, que serviram de fonte para a incorporação da oralidade em suas obras”, destaca a professora Graciela Ravetti, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras.
Além da literatura, García Márquez inspira outros ramos do conhecimento, como a historiografia. A professora Adriane Vidal Costa, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich), lançou recentemente o livro Intelectuais, política e literatura na América Latina: o debate sobre revolução e socialismo em Cortázar, García Márquez e Vargas Llosa, em que, dentre outros aspectos, analisa o papel da obra do escritor na disseminação do ideário da Revolução Cubana e nos demais debates políticos que se estenderam entre as décadas de 1960 e 1990, em especial no que tange aos temas socialismo e revolução.
Estudiosa das literaturas hispânicas e do teatro latino-americano, a professora chilena Sara Rojo, da Faculdade de Letras, analisa, na entrevista que se segue, a importância singular da obra de Gabriel García Márquez: “Ele propôs algo diferente. Nem o nosso realismo nem o surrealismo europeu. Uma criação que estreava um novo lugar de enunciação, a América Latina”. Confira os principais trechos.
“Gabriel García Márquez criou uma maneira diferente de se fazer e de se olhar para a literatura hispano-americana. Ele possibilitou olhar para a América Latina de um novo lugar, propondo uma enunciação que leva em consideração as características próprias, as misturas culturais e a diversidade da região. Ele foi capaz de produzir uma obra que, olhando para este lugar, falou dele de uma maneira nova, que nos favorece pensar de uma forma diferente esta região tão diferente que é a América Latina."
“O realismo maravilhoso de Márquez nos permitiu pensar em coisas de fora do cotidiano como naturais; como parte de nossa realidade, como parte de alguma realidade. Por exemplo: Márquez cria uma personagem tão bela que é quase inatingível. Tanto que sai voando. Um dia ela está colocando um lençol no varal e sai voando. O interessante é que, na obra, ninguém se assusta com isso, ninguém acha ruim. Dizem apenas ‘perdemos um lençol’. Mas acharam natural ela sair voando. Então o que ele traz é essa possibilidade da literatura de transformar em natural algo que em tese não é natural. Uma possibilidade de colocar em convivência a parte material da vida, o fogão, a panela, essas coisas, com a magia, o sobrenatural – e de nos colocar em convivência com isso.
“Na criação desse novo lugar de enunciação, Márquez incorpora técnicas de Faulkner, por exemplo, no sentido dessa capacidade de vislumbrar um mundo diferente, de enxergar o mundo por uma maneira diferente. Mas ele tinha um universo de leitura muito grande. Ele é influenciado por As mil e uma noites; Kafka também foi muito importante. Quando lê A metamorfose, Márquez percebe a possibilidade de escrever de outra maneira; a possibilidade de usar a escrita para relatar um mundo que tenha sido apresentado a ele por outras vias. Um mundo maravilhoso.”
“Quando pequeno, Márquez viveu com os avós em um lugar onde ouvia muitas histórias militares – e histórias meio mágicas contadas pelo pessoal da cozinha. Então ele vai cruzando essas realidades para compor a sua literatura. A cidade é Aracataca, na Colômbia, com a qual muitos teóricos relacionam a ficcional Macondo, de Cem anos de solidão. Outro elemento interessante, fruto dessas múltiplas influências, é que sua literatura pretende enxergar tudo, enxergar o todo, ser abrangente, uma ‘literatura total’. Sua obra também constrói redes. Um personagem de Cem anos de solidão, por exemplo, protagoniza depois uma história própria.”
“Para além de Cem anos de solidão, uma obra muito importante é O amor nos tempos do cólera. É um texto de que ele gostava muito. E tem outra linha. Não é tanto realismo maravilhoso, mas uma história de amor que atravessa diversas gerações. A obra é interessante, inclusive, na medida em que possibilita o conhecimento de outro tipo de literatura praticada por ele. Em contrapartida, tanto Cem anos de solidão quanto O amor nos tempos do cólera são livros muito volumosos. Um texto pequeno que eu citaria é A incrível e triste história da Cândida Eréndira e da sua avó desalmada. É uma novela muito linda, em que, a partir da imagem da relação de uma menina com sua avô, o autor possibilita uma reflexão sobre o poder na América Latina e as relações autoritárias no mundo.”