Fotos: Foca Lisboa/UFMG |
O aumento do consumo de peixes e os crescentes obstáculos à sua reprodução têm fortalecido, entre especialistas, a ideia da criação de rios de preservação permanente que funcionam como reservas biológicas. “É importante que alguns rios sejam inteiramente preservados, assim como ocorre com algumas matas. Mas não se pode pensar o rio apenas como a linha onde a água passa – a reserva deve necessariamente incluir suas lagoas marginais, várzeas e seus afluentes principais”, explica o professor Evanguedes Kalapothakis, do Departamento de Biologia Geral do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG. “Quando se começa a chegar próximo a limites perigosos – seja para o meio ambiente, seja para a economia – ideias boas voltam a ser discutidas com maior intensidade”, comenta. O maior alvo dos especialistas mineiros nessa campanha é o rio Santo Antônio, em Conceição do Mato Dentro, na Serra do Espinhaço. De acordo com o professor Paulo dos Santos Pompeu, do Departamento de Biologia da Universidade Federal de Lavras (Ufla), a importância desse rio no contexto da bacia do Rio Doce é incontestável. “Esse afluente, sozinho, abriga quase 90% das espécies registradas para a bacia, incluídas algumas que hoje são encontradas somente ali”, destaca. Ao comparar o uso do rio como reserva biológica e como ambiente para produção de energia elétrica, Pompeu diz que a geração energética perdida com o impedimento de implantação de algumas hidrelétricas corresponderia a menos de 10% do potencial da bacia. “Por outro lado, representaria a possibilidade de preservação, em longo prazo, da maioria das espécies de peixes da bacia do Rio Doce”, enfatiza o professor da Ufla. O professor Jorge Dergam, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), acrescenta: “A criação da bacia do Santo Antônio como unidade de conservação leva à proibição de soltura de espécies exóticas, particularmente as de alto impacto como os predadores do topo de cadeia: o dourado e o tucunaré". Segundo ele, a introdução de espécies exóticas é considerada a causa principal da extinção de espécies nos ambientes aquáticos de água doce em escala global. Estudos recentes conduzidos na UFMG pelos pesquisadores Thiago Cotta Ribeiro e Alexandre Lima Godinho apontam os rios Pardo/Mogi-Guaçu, Sapucaí-Paulista e Carmo, afluentes do rio Grande, como outros fortes candidatos a se tornarem áreas de proteção permanentes. A intenção de aumentar a consciência da sociedade acerca da importância de rios não barrados e dos peixes migradores que deles dependem ganha reforço com a realização no próximo sábado, 24, do Dia Mundial dos Peixes Migradores, iniciativa que inclui cerca de 250 eventos em diversos países. Segundo os organizadores, ao longo do dia, “seguindo o sol”, ocorrerão atividades que incluem a celebração da remoção de uma barragem no Japão e inauguração de mais de 20 mecanismos de passagem de peixes em todo o mundo. Em Minas Gerais estão programados cerca de dez eventos. Em entrevista ao Portal UFMG, o professor Evanguedes Kalapothakis explica a importância da migração para a reprodução desse grupo de peixes e enfatiza que a garantia de sobrevivência dessas espécies está relacionada a aspectos que afetam toda a sociedade, de forma indireta até mesmo com o abastecimento de água para centros urbanos. O que significa, na prática, a definição de um rio como ambiente de preservação permanente? Qual a distância que os peixes migradores costumam percorrer e por que fazem esse trajeto? O que define o local onde se reproduzem? A construção de barragens pode levar à extinção de algumas espécies? Qual a importância da diversidade genética? Que outras pesquisas surgem nesse contexto? O que muda no trato com um rio definido como reserva biológica?
Significa não apenas impedir a instalação de obstáculos artificiais, como barragens e represas que interrompem o fluxo natural dos rios e podem impedir a migração dos peixes. É muito mais do que isso. É necessário, por exemplo, preservar inteiramente as chamadas lagoas marginais, que têm papel importante porque “recrutam” ovos, pós-larvas e alevinos que descem o rio após o período de reprodução dessas espécies e que seriam facilmente usados como alimento por outros animais. Ao entrarem em uma lagoa, na época de cheia, eles têm mais oportunidades de sobreviver, e descem o rio depois que estão maiores.
A distância depende do rio e da espécie. A curimba, por exemplo, pode se deslocar por quilômetros até a região em que se reproduz. Os peixes dessa espécie sobem os rios para se reproduzirem – a fêmea solta os ovos e ocorre a fecundação com os espermatozoides que o macho libera na água. A reprodução ocorre quando os peixes atingem a maturação sexual, sendo importantíssimo o deslocamento “rio acima” conhecido como piracema. Nesse trajeto, vários fatores são importantes para que os peixes atinjam o objetivo final, ou seja, a reprodução e sobrevivência da prole. Outro aspecto é a seleção natural, pois são os mais fortes que conseguem chegar ao final, enquanto alguns morrem antes. Com relação ao percurso, estudos sugerem que os peixes podem voltar para o local onde nasceram – não se sabe muito bem como isso ocorre e existem pesquisadores trabalhando neste assunto.
Barrar a migração desses animais pode dificultar a reprodução. Pode não impedir completamente, depende da região, depende se o peixe terá uma rota alternativa, pois pode haver rios menores nos quais consigam migrar, atingir a maturidade sexual e finalizar o processo reprodutivo. É possível até que alguns já façam isso antes da construção de barragens – aspectos como esses estão sendo estudados. É importante que fique claro que as hidrelétricas, boas ou não para a natureza, são necessárias. A questão não é acabar com as hidrelétricas, mas encontrar caminhos e soluções que possam contemplar o lado ambiental, econômico e social.
Quando falamos de diversidade genética, podemos nos referir a algo que conhecemos, mas também a algo que não conseguimos sequer imaginar e que possa surgir, como uma bactéria, um vírus ou um predador que ataque os peixes de forma muito intensa, ou contaminação na água por elemento químico que normalmente não existiria ali. E dessa diversidade surgirão os indivíduos que provavelmente vão perpetuar aquela espécie porque têm resistência ao evento inesperado. Contudo, a diversidade genética é apenas um dos alvos das pesquisas que a preservação dos peixes migradores estimula.
Há estudos em vários âmbitos – os tipos de plantas existentes nos rios e nas lagoas marginais e que possam servir de alimento para os peixes; estudos sobre qualidade da água; levantamentos relacionados à presença de parasitas e de predadores; estudos sobre zooplânton e fitoplânton, sobre o comportamento dos peixes e a atuação humana, a exemplo da construção de barragens e mineração.
Ele precisa ser alvo de um trabalho global e intenso, incluindo políticas públicas, tem que ser protegido, ter tratamento de esgoto etc. Campanhas educativas com foco nos usuários devem ser constantes. A preservação direcionada a um rio tem reflexo muito grande para toda a comunidade, o que pode ser observado na crise de abastecimento de água. Por que São Paulo não utiliza a água do rio Tietê? Por que Belo Horizonte não utiliza a água do rio Arrudas? Porque poluímos o que está perto e precisamos pegar água cada vez mais longe. Até quando as fontes que estão longe vão resistir à poluição? A preservação de um rio é sentida pela população no momento em que começa a faltar água na torneira. Toda sociedade ganha com a criação de rios de preservação permanente.
Amostras de ovos e pós-larvas utilizadas em pesquisa sobre diversidade genética