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Em meio à crise hídrica que assola o país, emergem na esfera pública discussões sobre as causas do problema e como resolvê-lo. Entretanto, na visão do professor Leo Heller, relator especial da ONU sobre água e saneamento, o cerne da questão não é a falta de água, mas as dificuldades de acesso ao recurso. Em palestra ministrada na manhã desta quarta-feira, 11 de fevereiro, no Conservatório UFMG, o professor da Escola de Engenharia fez uma análise global do quadro e sentenciou: o planeta está longe da eficiência hídrica.
De acordo com Heller, as cidades sempre se formaram nas imediações de rios e lagos. “A água é necessária para nossa sobrevivência e para várias atividades humanas, como o comércio e o transporte.” O professor explicou que os problemas com o abastecimento de água começaram justamente com o crescimento desmedido das cidades: “Nunca se considerou que o desenvolvimento dos centros urbanos afetaria o ciclo da água, mas o tratamento inadequado do esgoto e o desmatamento às margens dos rios prejudica todo o sistema aquático. Daí a origem dos problemas que enfrentamos hoje."
Com a população brasileira preocupada com a possibilidade de racionamento, Heller lembrou que, embora o consumo humano seja visto como prioridade e se torne plataforma de muitos governos, na prática as coisas são bem diferentes. “Os maiores consumidores de água não são as pessoas, mas as atividades econômicas, como a mineração e a agricultura. Muitas pessoas sequer têm acesso à água.” Ele ressaltou ainda que as medidas de fornecimento não podem ser discriminatórias. “Em tempos de crise, não se pode simplesmente implantar um racionamento porque as populações menos favorecidos serão mais afetadas.”
Como exemplo, o professor apresentou dados que indicam clara discriminação social no sistema de saneamento básico no Brasil. “Pesquisas mostram que 33,9% dos municípios brasileiros não têm abastecimento adequado e 50,7% contam com esgotamento sanitário precário, a maioria nas regiões Norte e Nordeste. Isso é muito preocupante, porque mostra que houve discriminação no desenvolvimento do nosso sistema de saneamento que acabou favorecendo as regiões Sul e Sudeste em detrimento das outras”, alertou Leo Heller.
Direito irrevogável
Recém-nomeado relator especial da ONU sobre água e saneamento, Heller lembrou que o direito à água e ao esgotamento sanitário foi incluído na Declaração dos Direitos Humanos em 2010. Apesar de reconhecer o avanço, o professor chamou atenção para a falta de discussão sobre o acesso à água. “Não sabemos em que condições esse recurso chega à população. Aspectos como qualidade, quantidade e regularidade do fornecimento não são discutidos.”
Outro problema apontado pelo professor da UFMG é a acessibilidade econômica. “É preciso pensar nas pessoas pobres, nos moradores de rua e em habitantes de localidades distantes, para quem o custo da água costuma ser maior”, disse.
Ele citou, ainda, o caso de Detroit, nos Estados Unidos, onde todas as casas são abastecidas, mas a população não tem condições de arcar com o custo do sistema. “Além da falta de água para consumo próprio, os moradores de Detroit sofrem com o inverno rígido porque não têm dinheiro para pagar pela água que alimentaria o sistema de aquecimento”, explicou.
O saneamento básico é apontado por Heller como o ponto mais delicado para o cumprimento da diretriz de acesso universal aos recursos hídricos: “Muitas escolas e postos de saúde fecham simplesmente porque os banheiros não funcionam. Também há o problema da desigualdade de gênero, já que as mulheres são mais prejudicadas pelo esgotamento sanitário inadequado”.
O professor lembrou que a água também era objeto de uma das metas do milênio, segundo a qual a população sem acesso ao bem deveria diminuir pela metade até 2015. “Essa meta foi alcançada em 2012, mas ainda existem no mundo 800 milhões de pessoas que não dispõem de uma fonte adequada de água, 2,5 bilhões sem acesso ao esgotamento melhorado, 1 bilhão que defecam a céu aberto e 1,6 bilhão que morrem todos os anos em razão de doenças relacionadas à água e ao esgotamento”, enumerou Heller.
Desafios
Como caminhos para a crise hídrica no Brasil, Léo Heller recomenda mudanças na forma como o país vê, analisa e combate os problemas relacionados à água. “Temos de adotar uma abordagem por problemas e não por setor. Não basta uma secretaria, é preciso incluir acesso, conflitos, riscos ambientais, gestão. Também devemos substituir o imediatismo das obras públicas pela implementação de políticas públicas perenes", defendeu o relator.
O professor da UFMG afirmou ainda que os indicadores quantitativos devem dar lugar a uma compreensão globalizante do consumo da água, na qual os fins são considerados antes dos meios. “Por último, é preciso que a gestão da água deixe de ser autocrática e tecnista e se torne participativa, incluindo a população em todas as fases do processo”, encerrou Heller.