Universidade Federal de Minas Gerais

Renato Parada
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Heloísa Starling e Lilia Schwarcz lançam ‘Brasil: uma biografia’ em Belo Horizonte nesta quinta-feira, dia 14

'Biografia do Brasil pode ajudar o país a se reconciliar com seu passado', afirmam Heloísa Starling e Lilia Schwarcz

quarta-feira, 13 de maio de 2015, às 5h54

Como quase toda figura que tem sua vida esquadrinhada, é possível que o personagem de Brasil: uma biografia, livro escrito pela historiadora da UFMG Heloísa Murgel Starling e pela antropóloga da USP Lilia Moritz Schwarcz, se sinta, no mínimo, desconfortável com o pormenorizado relato não autorizado feito pelas duas professoras.

“Talvez ele [o Brasil] fique irritado, ou mesmo aflito, com a visada meio impiedosa do livro, que expõe nosso republicanismo falhado, a herança contraditória da mestiçagem, a democracia que convive perversamente com a injustiça social, a falsa imagem de um país ‘pacífico e sem guerras’”, desconfiam as “biógrafas”, que lançam a obra, editada pela Companhia das Letras, em Belo Horizonte, nesta quinta-feira, 14.

Nesta entrevista por e-mail ao Portal UFMG, as autoras lembram que "escrever um livro a quatro mãos é um desafio dos bons" e buscam refúgio em Guimarães Rosa para dimensionar o tamanho da empreitada: “Às vezes, quase sempre, um livro é maior que a gente".

Confira os principais trechos da entrevista:

Em que aspectos Brasil: uma biografia inova na leitura do país?
Procuramos inovar na perspectiva que se apresenta já no título do livro [a da biografia como método]. Em primeiro lugar, não há como escrever uma história do Brasil. Existem muitas e essa foi a que quisemos escrever: uma história afetiva, identificada, mas também indignada e, à sua maneira, republicana. Essa é também uma biografia, e o Brasil vira um personagem com suas contradições, com seus altos e baixos, acertos e erros, paradoxos, especificidades, curiosidades, esquinas e muitas vozes. Procuramos escrever histórias (no plural) no sentido de apreender a vida cotidiana, a vida política, a vida em sociedade, a vida da cultura. Procuramos os nomes ilustres, os intelectuais, artistas, mas também os anônimos.

Como essas vozes múltiplas se manifestam no volume, e o que elas contam de novo?
Brasil: uma biografia inova em diversos aspectos. Um deles está nessa visada que busca escancarar aquilo que, para nós, seria a marca e a complexidade da formação social brasileira: um país com uma história recorrente de lutas políticas, de reivindicação de autonomia e igualdade, de construção dos princípios de cidadania e de reconhecimento e expansão da liberdade, mas, ao mesmo tempo, marcado pelo nó da violência e sua determinação cultural profunda. A história do Brasil não é uma coisa ou outra; ela é uma coisa e outra: é uma história que começa muito antes dos portugueses chegarem ao Brasil (que nem era Brasil, mas uma África portuguesa), com diversas nações indígenas que habitavam de costa a costa. O encontro não foi um encontro: [foi] uma invasão, um genocídio que levou ao morticínio dessas populações. A reação se faz presente já no século XVI, por exemplo, nas Santidades – as rebeliões indígenas que combinavam milenarismo com anticolonialismo –, e continua com as diversas modalidades de luta dos escravizados e com as primeiras revoltas dos colonos. O escravismo virou uma linguagem social entre nós e foi assim naturalizado. Mas não há como imaginar um sistema que prevê a posse de um homem por outro, sem prever esse verdadeiro nó de violência que percorreu toda a sociedade.

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(Esse "nó de violência que percorreu toda a sociedade" é ilustrado pela foto de Orlando Brito, tirada em 1972, durante a ditadura civil-militar brasileira)

Ao longo da obra, as senhoras sustentam o argumento central de que a influência do sistema escravocrata permanece até hoje embaraçando o alcance de nossa plenitude democrática e republicana. A escravidão no Brasil foi atípica?
A sociedade brasileira contemporânea traz consigo essa complexidade e ainda vive da consequência de ter sido a última no Ocidente a abolir a escravidão: é capaz de consolidar a democracia como uma forma de sociedade – e não apenas de governo – e como um valor em si mesmo. Enquanto isso, essa mesma trama de violência e dor resiste inviolável, se dispersa e se repõe na trajetória do Brasil moderno, estilhaçada em milhares de modalidades de manifestação, reconhecidas por nós brasileiros, ou não.

O livro reproduz quase 140 imagens, várias delas originais. Nesse sentido, a iconografia também parece emergir como um aspecto inovador na publicação...
Aqui as imagens representam quase que “uma segunda biografia” do Brasil. Iconografia nesse caso não é “ilustração”. Procuramos mostrar como o material visual é um documento – do mesmo estatuto que um documento escrito – que, como tal, não é apenas produto de seu contexto, mas também o produz.

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("Missa campal celebrada em Ação de Graças pela abolição da escravatura no Brasil", fotografia de Antônio Luiz Ferreira, de 17 de maio de 1888, que integra a iconografia do livro)

Quando o livro começa a ser produzido?
O livro foi planejado no segundo semestre de 2012, começou a ser escrito para valer em 2013. É resultado de uma parceria intelectual que teve início em 2005.

As duas estiveram envolvidas com a redação do livro como um todo ou cada autora ficou responsável por redigir partes e aspectos específicos?
Foi um diálogo constante – atravessou todos os capítulos, mesmo aqueles cuja primeira versão foi feita por uma ou outra autora – e cheio de humor, o que ajudou muito na hora de dessacralizar os grandes personagens e eventos nacionais. Este é um livro em diálogo, em que cada capítulo procura trazer não só uma narrativa descritiva, mas uma interpretação, uma interpelação, um desafio. Os capítulos tomaram forma a partir de um diálogo que começa pela empatia comum das duas autoras com o “biografado”. Vale dizer, também, que o livro foi feito em polifonia. Não se faz um livro sobre a história do Brasil sem contar com a consagrada historiografia brasileira que vem sendo reconhecida internacionalmente. Portanto, são muitas as vozes que nos ajudam a construir essa biografia, que, ao final, é de responsabilidade toda nossa.

Os intelectuais José Murilo de Carvalho e Boris Fausto definiram o livro como uma "biografia não autorizada". Geralmente, esse tipo de obra repercute de duas formas junto ao biografado: na menos comum, ele se vale da leitura insubordinada feita de sua trajetória para se repensar; na mais recorrente, contudo, ele simplesmente refuta o diagnóstico não autorizado para se manter no conforto das sedimentadas verdades sobre si mesmo.
Como todo biografado, o Brasil não é contra a biografia desde que ela fale bem dele...

Como esperam que o biografado reaja a esse retrato?
Talvez ele fique irritado, ou mesmo aflito, com a visada meio impiedosa do livro, que expõe nosso republicanismo falhado, a herança contraditória da mestiçagem, a democracia que convive perversamente com a injustiça social, a falsa imagem de um país “pacífico e sem guerras”. Mas as histórias desse livro são como todas as histórias; não resolvem nenhum problema ou aliviam qualquer sofrimento. Elas não podem dominar o passado de uma vez por todas ou desfazê-lo em nenhuma de suas partes. Contudo, elas podem, à maneira de Homero, “endireitar a história com palavras mágicas para encantar os homens para sempre”. E podem muitas vezes reconciliar cada um de nós com seu próprio passado, lembrar do brasileiro que fomos e que deveríamos ou poderíamos ser e lembrar-nos de um Brasil que tem um passado e precisa indubitavelmente ser melhor do que o país que temos hoje. Enfim, lembrar também que o presente está, sempre, repleto do passado. Não há como simplesmente esquecer – para o bem e para o mal.

(Ewerton Martins Ribeiro)