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Nº 1903 - Ano 41
11.05.2015

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Um país como personagem

Brasil é biografado pelas professoras Heloísa Starling e Lilia Schwarcz

Ewerton Martins Ribeiro

Biografia remete ao grego bíos, vida, e graph (ou graphein), escrever. Ter essa significação em mente colabora para compreender a tarefa hercúlea que as professoras Heloísa Murgel Starling, do Departamento de História UFMG, e Lilia Moritz Schwarcz, da USP, se propuseram ao escrever Brasil: uma biografia (Companhia das Letras), livro que será lançado nesta quinta-feira, 14.

Na obra, as pesquisadoras escrevem sobre a trajetória do Brasil de forma, como afirmam, a “interrogar o que os episódios dessa vida individual têm a dizer sobre as coisas públicas, sobre o mundo e o tempo em que o personagem vive”. Para as autoras, a biografia, como método historiográfico, tem a vantagem de possibilitar a abordagem tanto dos homens públicos e das celebridades quanto dos personagens anônimos, pequenos, que, somados, constituem o país em sua heterogeneidade. “As diferentes maneiras como essas duas características se conectam e se desenrolam no gênero biografia evitam que uma única fonte de autoridade ou que uma única versão acabe por servir de padrão de verdade para narrar a história do país”, observam a autoras.

Lilia e Heloísa não ignoram que “escrever um livro a quatro mãos é um desafio dos bons”. Nesse sentido, as autoras contam que a mão de Lilia esteve mais presente na redação pertinente ao período colonial, ao império e à primeira república, enquanto Heloísa se dedicou mais às fases contemporâneas, em especial à ditadura civil-militar, e à temática da república e do republicanismo.

Contudo, elas esclarecem que, a despeito da “formação intelectual muito diversa das autoras”, a escrita de toda a obra se deu em diálogo: se, de um lado, a professora da USP problematizara todo o discurso de Brasil: uma biografia por um viés cultural e antropológico, a historiadora da UFMG buscou aprofundar os argumentos mútuos sob a perspectiva da ciência política. Essa escrita em diálogo, sinérgica, colabora para o caráter transdisciplinar e abrangente da obra.

A escravidão e seu legado

Com acesso a inédita documentação textual e iconográfica e com linguagem consistente e acessível a diferentes públicos, Lilia e Heloísa sustentam, como argumento condutor do volume de mais de 600 páginas, que o sistema escravocrata continua sendo o fator que embaraça a plena conquista da democracia. As professoras lembram que o Brasil absorveu a maior diáspora compulsória de africanos no mundo e que aqui se consolidou “o sistema escravista mais duradouro da era moderna, o único que tomou todo o território nacional. Isso sem esquecer que o país foi o último a abolir a escravidão”, dizem. De acordo com as autoras, o Brasil sente até hoje as consequências dessa sua gênese na recorrência do mandonismo, do coronelismo, dos paternalismos, das práticas clientelísticas, do preconceito contra trabalho, da corrupção, do “familismo”, costume brasileiro de transformar questões públicas em privadas.

“Apesar de não existirem formas de discriminação no corpo da lei, os pobres e, sobretudo, as populações negras são ainda os mais culpabilizados pela Justiça, os que morrem mais cedo, têm menos acesso à educação superior pública ou a cargos mais qualificados no mercado de trabalho”, destacam. Para Lilia e Heloísa, a investigação reunida no livro possibilita “compreender os brasileiros que somos e os que deveríamos ou poderíamos ter sido.” Trata-se de uma história contada não pela perspectiva da descoberta, mas da invasão, portanto não convencional, e de como tal contexto resultou na violência como uma parte estruturante da nacionalidade, algo que segue repercutindo no presente.

Por opção, as autoras estabeleceram como limite temporal para a biografia a primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso. No entanto, na conclusão da obra, elas abordam os dois mandatos de FHC, os governos de Lula e de Dilma Rousseff e os escândalos de corrupção que marcaram as duas últimas décadas da vida nacional. “Foi preciso recuar ao momento em que o país nem ao menos sabia que viria a ser um país e encostar – morrendo de medo – nos dias de hoje”, dizem. “É nossa compreensão que a história dos governos de Fernando Henrique Cardoso e de Lula ainda está se fazendo e que um novíssimo período da vida do país está sendo aberto”.

O que mais chama a atenção é o período ao qual a obra remonta: interessadas em perscrutar a gênese brasileira no que ela tivesse de indecifrada, as pesquisadoras recuaram sua abordagem até antes da chegada dos portugueses ao Brasil, de forma a abordar as mitologias e filosofias das sociedades ameríndias pré-colonização.

Representação não autorizada

Autora de um canônico ensaio sobre o assunto, a professora aposentada da Universidade Estadual de Campinas, Vavy Pacheco Borges, escreveu que, mesmo numa biografia, “não se chega ‘ao passado’, mas se constroem representações do passado.” Com Brasil: uma biografia, Lilia e Heloísa constroem uma nova representação sobre os últimos 500 anos do país – uma nova e “não autorizada” representação, como sugerem os historiadores Boris Fausto e José Murilo de Carvalho.

Para Boris, o livro “é uma biografia não autorizada de um personagem complexo, que se forma e se transforma ao longo de mais de cinco séculos, e continua se transformando até onde a vista pode alcançar”. Por sua vez, para José Murilo “estamos diante de uma biografia não autorizada do Brasil, relato interpretativo novo, desafiador. O leitor reconhecerá nele o país em que vive, com suas luzes e sombras, e se sentirá encorajado a participar da aventura de o construir.”


Afetiva, identificada e indignada

A leitura que Lilia e Heloísa fazem do Brasil é marcada por inovações. A começar pelo uso do recurso da biografia. “Não há como escrever uma história do Brasil. Existem muitas e essa foi a que quisemos escrever: uma história afetiva, identificada, mas também indignada e, à sua maneira, republicana”, esclarecem as autoras.

O livro também é original no uso das imagens ao desenhar uma “segunda biografia” do país. “Iconografia, nesse caso, não é ‘ilustração’. Procuramos mostrar como o material visual é um documento – do mesmo estatuto que um documento escrito – que, como tal, é produto de seu contexto, mas também o produz.”

O livro também analisa sistematicamente como a gênese escravocrata permaneceu, até a contemporaneidade, atuando como um dispositivo a dificultar o alcance de nossa plenitude republicana. “A sociedade brasileira contemporânea traz consigo essa complexidade e ainda vive da consequência de ter sido o último país no Ocidente a abolir a escravidão”, lembram as autoras.

Em Belo Horizonte

O lançamento do livro Brasil: uma biografia, em Belo Horizonte, será realizado no Memorial Minas Gerais Vale, que fica na Praça da Liberdade. As autoras autografam exemplares a partir das 19h30, mas haverá ampla programação durante a tarde.

Às 16h, o público será convidado a participar de visita guiada ao memorial. Depois, às 18h, será exibido curta de animação relacionado ao livro e, na sequência, às 18h15, os professores da UFMG Newton Bignotto, do Departamento de Filosofia, e Wander Melo Miranda, da Faculdade de Letras, realizam um debate.

O evento de lançamento tem vagas limitadas e demanda inscrição prévia, que deve ser feita pelo e-mail universitarios@companhiadasletras.com.br. Os participantes receberão certificado. Informações ­podem ser obtidas pelo telefone 3343-7317.



Livro: Brasil uma biografia
Autoras: Heloísa Murgel Starling e Lilia Moritz Schwarcz
Editora: Companhia das Letras
Preço de capa: R$ 59,90 (R$ 39,90 o e-book).