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Bruno Sena Martins: pesquisas sobre direitos humanos e memória social

Experiência colonial moderna segrega corpos ‘menos humanos’, que seriam ‘territórios’ a serem explorados pelo progresso, defende pesquisador português

terça-feira, 29 de março de 2016, às 10h31

O pesquisador português Bruno Sena Martins acaba de chegar ao Brasil para uma série de artividades na UFMG – entre elas, a conferência Corpo e racismo: do colonialismo à descolonização do humano, comunicação que ministra na noite desta terça-feira, 29, às 19h, no auditório do CAD 1. A conferência é reservada aos alunos dos cursos de graduação e demanda inscrição prévia para participação.

As demais atividades ministradas por Bruno na UFMG podem ser consultada em nota publicada no Portal UFMG, que conversou com o antropólogo e doutor em sociologia português por e-mail, durante a sua viagem para o Brasil, acerca de suas pesquisas sobre corpo, direitos humanos, colonialismo e memória social. Na entrevista abaixo, Bruno afirma que colonialismo é um dispositivo de violência que ainda hoje atua em países que foram colonizados – mesmo os que já conseguiram a sua independência, como o Brasil.

“As lutas anticoloniais não terminaram com as independências. Temos de entender a permanência dessa violência, tão insidiosa como incessante, para perceber os caminhos da emancipação social”, sugere Bruno, que é investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES). “A experiência colonial moderna colocou no centro do mundo colonial-racista a ideia de que corpos dos ‘menos humanos’ são parte dos ‘territórios’ a serem explorados pelo progresso”, explica o pesquisador, dando a entender que o pensamento eurocêntrico, hegemônico, apagou a violência colonial da história e do pensamento.

É nesse sentido que Bruno convoca a uma dupla descolonização, a dos corpos e a dos saberes. “A descolonização do conhecimento e do nosso próprio ser só se cumprirá quando formos capazes de nos libertar dos legados imperiais que estabelecem hierarquias econômicas, políticas e estáticas”. Essa descolonização, demarca Bruno nesta entrevista, só se dará “quando estiverem ensinando nas universidades como é que se faz história não colonial”.

Do que você fala em sua palestra Corpo e racismo: do colonialismo à descolonização do humano?
Falo da importância de descolonizarmos os corpos e os saberes num mundo que é “ainda-colonial”. O pensamento eurocêntrico apagou a violência colonial da história e do pensamento; esse pensamento é hegemônico em grande parte do mundo e, crucialmente, no espaço acadêmico. Afirmo que temos de entender a permanência dessa violência, tão insidiosa como incessante, para perceber os caminhos da emancipação social.

Ao mesmo tempo em que valorizamos as resistências e as conquistas, cabe compreender que as lutas anticoloniais não terminaram com as independências ou com os valores consagrados – seja no regime internacional dos Direitos Humanos, seja na legislação que, nos diferentes Estados, traduziu políticas de reconhecimento. Descolonizar é, ainda, uma missão crucial para as mulheres e para os homens do século 21. O pressuposto, nesse sentido, é o de que a herança colonial ainda define algumas das mais decisivas linhas de separação sistema-mundo em que vivemos.

Como o processo colonizador reverbera no presente?
A experiência colonial moderna colocou no centro do mundo colonial-racista a ideia de que corpos dos “menos humanos” são parte dos “territórios” a serem explorados pelo progresso. Por isso, ao falar da descolonização dos corpos, sublinho a urgência de confrontarmos aquilo que há de racista e colonial nas nossas sociedades – em particular, a cor da pele e os indicadores de pertença étnica, que estruturam hierarquias entre sujeitos e grupos sociais, naturalizando desigualdades e produzindo violências sobre aqueles que menos poder têm para as denunciar.

Inclusivamente, temos de lutar até mesmo contra uma violência “própria”, no sentido de que, internalizando o preconceito, muitas vezes nos olharmos no espelho através dos olhos do opressor. Foi por isso que o grito “BlackisBeautiful” (“O Negro é Bonito”) se tornou fulcral na luta dos negros estadunidenses.

E o que é necessário para que se realize enfim essa descolonização dos corpos?
A descolonização dos corpos só se cumprirá quando formos capazes de nos libertar dos legados imperiais que estabelecem hierarquias econômicas, políticas e estáticas. É através dos nossos corpos que podemos sentir a subjugação ou o poder revolucionário anticolonial. Essa descolonização depende crucialmente das lutas com que os habitaremos [nossos corpos], aprendendo com as inúmeras histórias de coragem e resistência daqueles que nunca aceitaram ser tratados como menos humanos e daqueles que, enfim, nos ensinam que a ideia de humano tem muito a aprender como o espírito de cada lugar.

A descolonização dos saberes, por sua vez, apela à urgência de percebermos que a ciência e as disciplinas modernas, a base de autoridade do saber moderno ocidental, foram também legitimadoras dos processos coloniais e silenciadoras das violências que daí resultaram.


Em diálogo com suas pesquisas acadêmicas, Bruno Sena Martins realizou o documentário Deficiência e emancipação social: para uma crise da normalidade.

Em suas reflexões, você fala em ainda haver, atualmente, nas sociedades que viveram sob o sistema colonial – um exemplo, o Brasil – certa demarcação informal entre seres humanos e seres sub-humanos. De fato, no Brasil são fecundas as discussões sobre como o sistema colonial escravocrata segue ainda hoje impactando e dificultando o estabelecimento de uma satisfatória justiça social. Que leitura você faz da realidade brasileira contemporânea, em específico?
Os dados disponíveis dizem-nos que 12,5 milhões de africanos terão sido transportados para o continente americano no comércio transatlântico e que o Brasil foi o principal destino: 5 milhões de homens escravizados teriam desembarcado nas suas costas. (As informações sobre estes dados podem ser encontrados no excelente site http://www.slavevoyages.org/.) Quando comparadas com o Brasil, as colônias espanholas continentais têm números bem mais modestos, diferença que se deve ao fato de nestes lugares as pessoas escravizadas nunca terem sido a base obreira da economia produtiva. No Brasil, elas eram essa base obreira, isso muito devido ao peso das plantações de açúcar. A violência desse sistema produtivo era tal, e a taxa de mortalidade tão acentuada, que a população escravizada não chegava a se reproduzir. Esta é mais uma das razões para os elevados números de pessoas escravizadas que desembarcaram no Brasil: a morte criava uma demanda incessante. Nesse sentido, os afrodescendentes são, também simbolicamente, herdeiros do legado de todos aqueles que faleceram no trânsito atlântico ou que, expostos à inclemência do racismo colonial-capitalista, morreram antes de poder deixar descendência.

Esse contingente de africanos e afrodescendentes – que durante séculos foram submetidos a uma cruel exploração econômica e a uma aniquilação de sua subjetividade – fixou de forma renitente a cor de sua pele como um indicador de radical diferença ontológica, de natureza do ser, algo que hoje se reflete numa diferença social arraigada e “legitimada” pela perversa naturalização exercida pelo peso dos séculos.

Em suas investigações sobre as Américas, o senhor também mensura os impactos sofridos pelas civilizações autóctones?
Acredita-se que a população nativa nas Américas tenha sido reduzida para 10% entre 1492 e meados do século 17. Um autêntico genocídio, que continuou, daí em diante, sob diferentes formas: violência física, expropriação de terras e de saberes, aniquilação de culturas ancestrais e de formas de viver o mundo. Essa infame violência estruturou a colonização das Américas, e não custa supor o seu impacto.

Esses dados se tornam ainda mais relevantes se pensarmos que as independências jamais trouxeram uma ruptura para esse sistema. Na verdade, essa ruptura seria muito improvável, pois nas Américas, com a exceção do Haiti, as independências foram reivindicadas pelos descendentes dos colonos – europeus na cor da pela e na cultura. Isso também explica a permanência de um profundo eurocentrismo nas relações de desigualdade econômica e na colonialidade das instituições de ensino e das políticas de reconhecimento.


Documentário A hospitalidade ao fantasma: memórias dos deficientes das forças armadas, de Bruno Sena Martins

No Brasil, ainda hoje recorrem (publicamente) discursos que dividem a população em duas parcelas: aquela em que os sujeitos têm direito a serem "humanos" e aquela em que os sujeitos são privados desses direitos. Trata-se de um sistema hierárquico, que resulta em frases como "direitos humanos para humanos direitos" – frase que, basicamente, sugere que as prerrogativas dos direitos humanos só devem ser oferecidas a uma parcela da população, e não a toda ela. Isso lhe parece uma particularidade brasileira? Em que medida esse tipo de cultura reincide em outros países colonizados, ou mesmo em países da Europa, Portugal?
É crucial notar que, quando emerge uma concepção filosófica e política que reclama os direitos inalienáveis do Homem, essa mesma filosofia define igualmente quem tem o direito a ser humano (durante muito tempo, o termo usado é “direitos do Homem”). Proclamações como a Declaração da Independência dos Estados Unidos da América (1776), a Declaração dos Direitos do Homem ou Cidadão (França, 1789) e a Declaração Universal dos Direitos do Homem (“Declaração Universal dos Direitos Humanos”, 1948) claramente circunscreviam quais seriam aqueles com direito a serem “humanos”. Os direitos das mulheres, por exemplo, não eram sequer uma questão para eles.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos também deixou de fora a autodeterminação dos povos para não beliscar os impérios coloniais europeus. Naquele momento, metade do mundo ainda vivia sob um regime colonial. Portanto, o humanismo dos direitos humanos sedimenta certa tradição patriarcal e eurocêntrica, razão pela qual Frantz Fanon [psiquiatra, filósofo e ativista anticolonial nascido na Martinica, no Caribe] falava de um “humanismo racista”. É nesse sentido que os Direitos Humanos precisam, como já vai acontecendo, ser transformados exatamente por aqueles que são considerados menos humanos – os tais “humanos não direitos” aos quais alude a expressão que você cita.

Os Direitos Humanos terão que ser libertados: da sua origem monocultural ocidental; dos jogos de poder que os colocam, tantas vezes, ao serviço dos duplos critérios e de justificações imperialistas; de uma concepção de direitos que os considera congruentes com a ordem global neoliberal.

Nesse formato, o direito a ser humano é dado segundo um imenso “depende”. Esse “depende” é bem sintetizado pela [filósofa americana] Judith Butler, quando ela defende que, nos regimes de poder em que vivemos, “o humano é entendido diferentemente dependendo da sua raça, a legibilidade da sua raça, do seu sexo, a verificabilidade preceptiva desse sexo, da sua etnicidade, a compreensão categorial dessa etnicidade”.

Tanto a modernidade (com as promessas que não conseguiu cumprir) quanto a pós-modernidade (com as problematizações que propôs para essas promessas) parecem não ter colaborado para que esses gargalos sociais fossem solucionados...
A pós-modernidade, nas célebres palavras de Jean-François Lyotard [filósofo francês], de certo modo assinalou a “grande narrativa do fim das narrativas”. Aquilo a que chamamos pós-modernismo teve uma grande valia no modo como opôs as certezas e os determinismos da modernidade, particularmente os da ciência moderna, e teve relevância ao explicitar a contingência e a parcialidade de todo o conhecimento, estabelecendo uma relação entre sujeito, experiência, texto, arte e interpretação, algo que ajudou a desalojar os argumentos de autoridade em favor de uma autorreflexividade capaz de desconstruir e questionar aquilo que tomamos por certo.

No entanto, os limites dessa autorreflexividade também ficaram expostos, por diferentes motivos: porque alguns dos seus autores se limitaram a uma celebração apolítica da impossibilidade de afirmar certezas; porque, ao manter-se numa reflexão marcadamente eurocêntrica, pouco dada a dialogar com epistemes não eurocêntricas, essa autorreflexividade enredeou-se em jogos circulares de desconstrução de uma tradição cultural, corroborando as suas fronteiras; e porque o pós-modernismo não teve muito a dizer a quem procurava narrativas persuasivas para as lutas políticas contra o capitalismo ou contra o colonialismo.

Em seus estudos, você fala em haver sofrimentos que “merecem ser lembrados” e sofrimentos que “não merecem”. Exemplifique como isso funciona, por favor.
Em dezembro de 1984, aconteceu em Bhopal, na Índia, o maior desastre industrial da história. As estimativas indicam que milhares de pessoas morreram entre a noite e as semanas seguintes ao acidente; 25 mil nos anos subsequentes; e que mais de 100 mil pessoas ficaram com importantes sequelas permanentes. Bem, estive em Bhopal há dois anos para fazer trabalho de campo na clínica de uma ONG que presta cuidados de saúde aos habitantes da cidade. Nessa visita, pude ver que, mesmo depois de tudo o que passaram, os sobreviventes continuam a viver numa zona que não foi limpa; eles são obrigados a beber água contaminada e a lutar com os problemas de saúde sem encontrarem cuidados condignos, isso 30 anos depois do acidente. A questão é que, mesmo assim, não há muita gente no mundo que saiba o que se passou e o que está a se passar em Bhopal. Poucos sabem dos sofrimentos dessas pessoas, e isso ocorre porque elas não pertencem à parte do mundo “certa” nem têm a cor da pele ou os recursos culturais e econômicos para que suas vidas possam ser parte da nossa história.

Como investir então em uma mudança de atitude, de forma a impedir que a História siga contando apenas (ou principalmente) a perspectiva dos vencedores? Qual seria o caminho para dar voz e História aos que são marginalizados, empurrados para uma situação social-hierárquica inferior?
De fato, assistimos a uma colossal seletividade nos termos em que determinados sofrimentos e violações à dignidade são denunciados pelos media e ganham um lugar na memória social; muito é ignorado, silenciado, apagado da história. Os escandalosos números de homicídios de jovens negros no Brasil são disso outro bom exemplo. Nesse sentido, eu diria que, mais do que dar voz, temos de saber ouvir as vozes que até aqui desconhecíamos. A descolonização do conhecimento e do nosso próprio ser se fará quando os deserdados da terra tiverem direito a ser gente com lugar na história da nossa vida, na memória social – quando estiverem ensinando nas universidades como é que se faz história não colonial.

Qual seria então o arquétipo do corpo insurgente, face a esse cenário?
Acredito que os corpos insurgentes são aqueles que, tendo sido feridos, fazem da resistência e da determinação contra a opressão uma agenda política. É isso que nos contam os quilombos ou a espantosa resiliência cultural dos povos indígenas. Acredito igualmente que os corpos insurgentes serão aqueles que souberem recolher o testemunho daqueles que carregam em si as marcas, físicas e simbólicas, do colonialismo e da colonialidade.

(Ewerton Martins Ribeiro)

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