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Nº 1334 - Ano 28 - 17.01.2002

 

 

A greve e o futuro da universidade pública *

Francisco César de Sá Barreto **

primeira reflexão que se deve fazer, a respeito da greve dos docentes das universidades e escolas isoladas federais, consiste em encontrar a razão pela qual eles aderiram tão maciçamente à paralisação, que durou mais de cem dias. Numa leitura simplista, dir-se-ia que foi uma manifestação de indignação; se este diagnóstico for correto, teremos de concluir que o Governo contribuiu para transformar em um movimento de enormes proporções uma greve que tinha tudo para manter-se de pequena envergadura. Ela obrigou ao adiamento do vestibular em várias universidades, indicador, entre outros, de bastante gravidade. Num cenário de interesses múltiplos e conflitantes construiu-se a fortaleza da greve, que foi apropriada e aproveitada por diversos atores desse embate. Devemos inicialmente considerar o governo, que não conseguiu encaminhar uma saída para o movimento. Por várias ocasiões, o MEC teve a alternativa de encerrá-lo e não o conseguiu devido a conflitos entre diferentes segmentos do governo.

Outro importante ator que contribuiu para o fortalecimento da greve representa o lado anacrônico do corporativismo universitário (não confundir com o desejável e inevitável esprit de corps) que defende a padronização, a uniformidade, a universalidade e a isonomia; ele também desconsidera diferenças entre as instituições, entre os departamentos e até mesmo entre professores. Esse segmento não consegue distinguir, talvez propositadamente, os conceitos de autonomia e soberania. A universidade federal brasileira mudou drasticamente desde a reforma universitária de 1968, mas isto parece não ter sido incorporado à cultura de alguns segmentos universitários.

Um terceiro ator foram os reitores, que acabaram conduzidos pela corrente dos acontecimentos. Eles não foram agentes ativos na construção de soluções, ficando à mercê de fatos gerados pelos sindicalistas e pelo governo.

Mais do que olhar a questão da paralisação pontualmente, é preciso compreender que a universidade deve ser ana lisada como imprescindível à construção de uma nova agenda social que atenda à premente necessidade de se atingir a médio prazo - ou seja, ainda nesta década - um crescimento social e econômico sustentável para nosso País. Não se trata aqui de comparar competitividade entre os países, mas de verificar se o Brasil tem programas e projetos capazes de garantir essa sustentabilidade com vistas a promover sua inserção independente no mundo globalizado. Essa meta não será atingida sem possuirmos uma forte estrutura de ensino, integrada à pesquisa, tecnologia e inovação. Sem isso, nossa inserção será dependente e não passaremos de consumidores de produtos e de conhecimentos gerados alhures.

A opção pelo modelo econômico vigente, em construção nas últimas décadas, permitiu inferir desinteresse de setores governamentais pelas universidades públicas, alimentando, inclusive, a dúvida sobre sua intenção de mantê-las. Nesse ambiente desfavorável, as próprias universidades públicas devem estruturar-se para gerar modelos que lhes permitam evoluir no novo cenário em que se dá a geração do conhecimento, cuja característica fundamental é a enorme velocidade no fluxo de informação, sobretudo através de redes de comunicação. Até agora, o Governo não tem propostas para reestruturar as Ifes; portanto, elas próprias terão de enfrentar o desafio de gerar os modelos que virão a prevalecer.

A universidade federal possui parcela significativa de docentes - na verdade, jovens professores/pesquisadores - capazes de construir um novo modelo institucional e gerar o conhecimento que assegure a sustentabilidade integrada da pesquisa, do ensino e da extensão. O patamar de qualificação atingido pelas Ifes é resultado do trabalho e do compromisso de várias gerações, mas é imprescindível dirigir o olhar para o futuro. O grande desafio da instituição universitária reside em transformar-se para receber as próximas gerações; a universidade almejada será identificada com aqueles jovens docentes, pois serão eles que definirão seu futuro. Esse é o segmento universitário que só agora vem-se envolvendo de forma mais clara e intensa nas questões da paralisação e das definições conceituais inerentes ao processo de renovação da universidade; eles estão adquirindo a consciência de que é inevitável sua participação na busca de saídas para os problemas universitários, e que elas não passam necessariamente por repetidas paralisações.

Iniciamos este artigo com uma referência à "greve da indignação", mas acreditamos que se tratou de um movimento muito mais profundo e abrangente: o que está em curso é uma ruptura conceitual e operacional da instituição universitária.

A sociedade exige - e exigirá cada vez mais - uma definição clara do papel da universidade pública na elaboração de uma nova proposta social. Às instituições públicas cabe, prioritariamente, constituir-se em espaço de geração do conhecimento competitivo que assegure a sustentabilidade do modelo social, qualquer que seja este, mas que incorpore parâmetros dinâmicos capazes de gerar respostas para os anseios sociais.

O compromisso com o futuro permite acreditar que a utilização de movimentos grevistas como o encerrado não interessa mais à universidade pública, nem à sociedade. Se o último movimento pode ser visto como um marco de ruptura, ele terá cumprido o seu papel; sua missão de conscientizar a comunidade universitária e setores da sociedade sobre a urgência da mudança já está concluída. Trata-se, por isso, de empenhar-se em construir uma agenda para a universidade do amanhã, aquela que contribuirá significativamente para conduzir as mudanças da sociedade até o final da década. Esse é o desafio para todos nós, comunidade universitária e Governo. A maioria das questões que formaram a pauta de reivindicações do movimento que se encerrou serão atendidas nesse trabalho de reconstrução.

* Artigo publicado pelo jornal O Globo, em 26/12/2001
** Reitor da UFMG