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Nº 1552 - Ano 33
16.10.2006

Universidade avançada e fronteiras do saber

Ivan Domingues*


Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (IEAT) lançou em discussão um tema da maior importância e que não estamos habituados a debater em nossos meios, anestesiados pelas solicitações do cotidiano e exauridos pelas urgências que não terminam. O tema é justamente a natureza do conhecimento avançado nos diferentes campos disciplinares, das humanidades às biológicas, das exatas às tecnológicas. E a justificar a noção de conhecimento avançado, encontraremos, como moeda de troca, a idéia de fronteira do saber, como que a sugerir que o avançado é aquilo que vamos descobrir nas fronteiras dos campos disciplinares.

A alma da universidade é a produção e difusão do conhecimento, tendo em uma ponta o ensino e, em outra, a pesquisa. É claro que as duas pontas devem estar unidas em algum lugar e o que caracteriza a essência do conhecimento é seu duplo laço com a busca do novo ou da novidade e a consciência de que em seu âmago encontra-se não o saber, mas a ignorância. O laço do conhecimento com a novidade deve ser bem compreendido, pois se é verdade que ninguém quer pesquisar ou conhecer o já conhecido ou o já sabido, mas algo inédito, em contrapartida o novo, ao surgir, vira velho e ninguém vai descartar o conhecimento adquirido.

Nos laboratórios e bibliotecas, o conhecimento será guardado como memória e estoque, será difundido junto a levas de estudantes ano após ano e será considerado patrimônio da humanidade e bem da civilização. Já a ignorância, que está na raiz do conhecer, é acrescentada ao conhecimento como seu resultado incontornável, gerando o paradoxo de o conhecimento aumentar a consciência da ignorância, em vez de diminuí-la ou combatê-la. Não compreender o papel desses antípodas no ensino e na pesquisa só serviria para embaralhar o laço entre o conhecimento de ponta e a universidade avançada.

Bem pesadas as coisas, o conhecimento avançado e de ponta pode ser gerado nos campos disciplinares tradicionais, seguindo os credos e as ortodoxias vigentes, ou dar ensejo à criação de novos campos ou disciplinas, como a bioinformática. Por seu turno, a novidade a que o avançado está associado pode estar tanto no método, quanto no objeto. Procurada neste ou naquele, tanto faz se o olhar está voltado para o passado ou para o futuro, na vanguarda ou na retaguarda, como ocorreu com a paleontologia, depois da introdução da técnica do carbono 14, cujo impacto nas datações revolucionou campos disciplinares inteiros – da arqueologia à antropologia, passando pela história. Por outro lado, o conhecimento avançado e de ponta só terá a credencial e dirá a que veio se conduzido no estado da arte, e o estado da arte, junto com as idéias de excelência e de perfeição, está associado às noções de fim de linha e de situação-limite que têm lugar quando a fronteira do saber e do não-saber é atingida e as cabeças batem no teto, gerando a necessidade de expansão e alargamento das fronteiras disciplinares.

Ora, é justamente neste ponto que se inscrevem e se justificam as abordagens multi, inter e transdisciplinares, conduzidas no estado da arte e tendo por escopo o alargamento das fronteiras do saber. Especialmente as abordagens inter e transdisciplinares, caracterizadas pela busca de abrangência e a perspectiva de unificação, um pouco como ocorreu com Newton que, vivendo numa época de maior frouxidão disciplinar, celebrou, com sua mente poderosa, o casamento da matemática e da física e unificou a física celeste e a física terrestre.

Buscando sua matéria seja nas zonas de ignorância do conhecimento, dentro e fora das disciplinas, seja nas fronteiras, nas interfaces e nos interstícios dos campos disciplinares, uma universidade avançada saberá o que fazer e dizer a que veio. O modelo não deverá ser buscado nas universidades americanas, que se deram bem ao responder ao desafio de instalar uma universidade de massa, mas acabaram enlouquecendo, em razão do produtivismo. Nem nas universidades européias, que se deram mal e estão combalidas, sequer nas universidades asiáticas que estão em ascensão e deverão enlouquecer ao seguir os passos das americanas. Mas deverá ser buscado e construído aqui mesmo, de olho naquilo que melhor encontrar alhures e reconhecer em outras.

Uma condição é não esquecer que as universidades, a exemplo das sociedades políticas, depois de fundadas, devem ser refundadas mais de uma vez, para dar conta dos desafios do tempo. Outra condição é não perder o ethos e a alma. Ora, a UFMG ainda tem o ethos, mas está perdendo a alma, e isso é perigoso. Para salvar o que sobrou do ethos e proteger a pesquisa avançada das ameaças da banalidade do dia-a-dia e do pragmatismo predador da prestação de serviços, a saída poderá ser a criação de nichos especiais, resultando desta ação a fundação de várias universidades dentro da Universidade. Ora, é lá no meio desses nichos do saber e centros de excelência, verdadeiras catedrais da pesquisa avançada, aliando o ethos acadêmico a alma da universidade, que iremos encontrar o IEAT.

*Professor titular do departamento de Filosofia da Fafich



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