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Nº 1565 - Ano 33
12.2.2007

De volta à escola *

Marco Aurélio Nogueira**

om que políticas os recém- empossados governos privilegiarão a educação, tida de modo quase generalizado como a principal chave de acesso para o futuro? Como pais e filhos se posicionarão diante de uma escola que, justamente sobrevalorizada no imaginário social, não consegue atender às expectativas e tem sido submetida a tantas “reformas” e alterações que acabou por ficar sem cara, deixando de gerar confiança e lealdade em seus usuários, os cidadãos?

E o que esperar de professores, estudantes e diretores num contexto que dá mostras seguidas de estar “fugindo do controle” e provoca atritos e tensões de variado tipo, a ponto de fazer com que o dia-a-dia escolar às vezes ganhe cores de verdadeiras batalhas campais? Não devemos dramatizar em demasia o quadro, sob pena de convertê-lo em algo incompreensível e de menosprezar os avanços que têm ocorrido na área educacional. Mas a situação é delicada e merece reflexão.

A questão da escola deita raízes profundas em nossa forma atual de vida, reflete a “confusão” que acompanha a reorganização social nesta era de revolução tecnológica acelerada, reestruturação produtiva, individualização e democratização dos relacionamentos. A escola recebe todo o impacto desse processo porque oferece, aos membros da sociedade, um palco privilegiado para que sejam testados os novos arranjos que estão sendo esboçados em termos de sociabilidade, convivência, aprendizado e organização.

A época é de crises, dúvidas e paradoxos. Tudo está posto em xeque e desafiado. Os sistemas falham seguidamente, as regras e normas têm dificuldades enormes para aderir à vida, que se mostra muito mais forte e ágil do que elas. O marco normativo e institucional é refeito de forma incessante, como se a mudança ininterrupta pudesse trazer luz e apaziguar os espíritos.

Os estudantes que chegam aos bancos escolares são a cada ano mais imprevisíveis, subvertendo planejamentos, cálculos e procedimentos docentes. Lêem, estudam e pesquisam de outro modo, exploram caminhos distintos para resolver suas tarefas, usam informações surpreendentes, são quase sempre hiperativos e dispersivos, não conhecem limites, instigados que estão a ser livres e participativos. São crianças digitais e eletrônicas, ainda que não tenham deixado de ser crianças. Operam máquinas potentes, freqüentam redes ampliadas que dão asas à imaginação e forçam as fronteiras do conhecido e mesmo do razoável, e nem sempre sabem como agir nesse universo, como usá-lo a seu favor sem prejudicar os outros, como se divertir nele, mas também aprender com ele.

De que maneira assimilar recursos como o Orkut, o YouTube e o MSN sem transformá-los em armas contra os outros – em armas contra os professores ou contra os colegas, por exemplo – ou convertê-los em mecanismos de entretenimento alienado? O que fazer com celulares que podem quase tudo? Como ser convencido a ler e pesquisar livros “físicos” quando tudo está digitalizado, muitas vezes mastigado e pasteurizado, quando há mil formas de burla e de facilidades ao alcance do mouse? Como ficar sentado, em silêncio e concentrado numa aula “presencial” quando o mundo “lá fora” é puro frenesi de sons, imagens e movimento?

Há uma lacuna ética nesse terreno, e ela não afeta somente os jovens. A escola existente – a das massas e a das elites – não tem como ser um ambiente de paz, consensos e certezas. Tornou-se um espaço de confusões e expectativas mal dimensionadas, seja por parte de professores e alunos (que já não falam mais a mesma língua nem respeitam o mesmo “pacto”), seja por parte das famílias, que esperam tudo da escola, até mesmo uma oferta de “disciplina” e “educação” que deveria resolver-se dentro de casa, seja por parte dos governos, que não sabem o que fazer com ela. Ainda quando modernizada, ela traz na corrente sanguínea as toxinas provenientes de políticas educacionais casuísticas, da crônica e justíssima insatisfação dos professores, da infra-estrutura inadequada, dos desajustes familiares, da pressão do mercado de trabalho.

A escola “sofre” por isso e também porque é o resultado vivo da incapacidade que a sociedade, o Estado e a política têm de se interessar ativamente por ela e defendê-la.

Em vez, portanto, de ficarmos falando mal das escolas, reclamando das falhas e das más intenções governamentais e clamando por soluções imediatas, deveríamos começar a fazer propostas concretas e a recriar os contratos básicos: o contrato entre os educadores e destes com os estudantes, o contrato entre a escola e a sociedade (as famílias) e o contrato entre a escola e o Estado (os governos).

O quadro não é desanimador. Ainda que em estado de sofrimento, a escola persiste como principal recurso estratégico das comunidades humanas. Não há outra instituição que possa fazer o que ela faz, que espelhe tão bem o que as sociedades têm de bom e de mau, suas tradições, sua força e suas possibilidades. Essa sua extraordinária relevância e o fato mesmo de que a escola se renova sem cessar, graças à circulação de alunos e professores, são a maior garantia de que ela estará presente no futuro.

A época nos atormenta, mas também amplia nossos horizontes. E, até prova em contrário, é melhor ter estudantes “desregrados” e dispersivos, mas conectados e inventivos, do que estudantes bem-comportados e obedientes, mas ilhados e pouco comunicativos. Participação excessiva e vontade exacerbada de confrontar podem gerar ruído e desconforto, mas são preferíveis à verticalização das decisões ou à autoridade unilateral do professor, pois têm maior potência emancipadora e ajudam os jovens a se converterem em sujeitos de todos os processos, incluído o do conhecimento.

*Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, de 27 de janeiro de 2007
** Professor da Unesp

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