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Nº 1585 - Ano 34
08.10.2007

Entrevista

Magda Becker Soares

Um acordo desnecessário

Foca Lisboa
magda
Magda Becker:
reforma em lugar de acordo ortográfico

As mudanças propostas pelo acordo ortográfico entre os países de língua portuguesa são irrelevantes. Elas envolvem a reincorporação de algumas letras, como k, w e y ao alfabeto, a eliminação do uso do trema e de alguns acentos e mudanças no uso do hífen. Nada que justifique, na opinião da professora Magda Becker Soares, da Faculdade de Educação, um pacto entre países para uniformização da grafia. Uma das maiores especialistas brasileiras em alfabetização e letramento, Magda propõe, na entrevista abaixo, outra solução: uma reforma ortográfica, “que simplifique as regras, que são muitas, e nem todas necessárias”.

A língua portuguesa necessita de um novo acordo ortográfico?
Seria, talvez, bem-vinda uma reforma ortográfica, que simplificasse as regras, que são muitas, e nem todas necessárias. Mas não me parece que se justifica um acordo ortográfico – um pacto entre os países de língua portuguesa para a uniformização da grafia. Em primeiro lugar, é discutível a justificativa dada pelos seus adeptos de que o acordo é um passo importante para a defesa da unidade da língua portuguesa e para o seu prestígio internacional. Por outro lado, tem-se alegado que a unificação solucionaria problemas que na verdade não existem: apresenta-se como objetivo a necessidade de facilitar o intercâmbio cultural e científico entre os países e sua prática em eventos internacionais, quando o intercâmbio e a prática já ocorrem

A senhora poderia dar exemplos?
No Brasil, lemos autores portugueses, como Saramago, Lobo Antunes, Inês Pedrosa, moçambicanos, como Mia Couto, angolanos, como Agualusa, que, por sua vez, declaram-se leitores de Machado de Assis, de Guimarães Rosa. Textos científicos transitam sem incompreensões, a publicação de artigos de cientistas e intelectuais dos países da comunidade de língua portuguesa se faz em periódicos nossos e deles, sem necessidade de “tradução” ortográfica. Entendemo-nos facilmente nos textos escritos.

Na verdade, as diferenças ortográficas são as que menos nos perturbam. O que nos perturba mais são as diferenças de vocabulário – palavras diferentes para designar a mesma coisa ou com sentidos diversos. O correto seria que os nossos dicionários, e os deles, incluíssem essas diferenças semânticas, como, aliás, já fazem os bons dicionários, nossos e deles.

As tentativas de unificação não traduzem uma visão patrimonialista do idioma, que estará sempre em conflito com as vivências culturais e lingüísticas dos países signatários do acordo?
Como a iniciativa do acordo partiu sobretudo do Brasil, alguns intelectuais e escritores portugueses têm denunciado, conforme diz Inês Pedrosa, em texto publicado, no início de setembro, em O Estado de São Paulo, “o colonialismo dos ex-colonizados” e a “humilhação estatística”: 1,4% de alterações para Portugal, apenas 0,5% para o Brasil – é o cálculo que vem sendo feito. Portugal ainda não ratificou o protocolo do acordo, o que foi feito até agora por Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. A resistência dos outros países, particularmente Portugal, parece vir do equívoco de impor mudanças que ferem a tradição da grafia da língua em cada país – um conflito com a tradição, não com as diferentes vivências culturais e lingüísticas dos povos desses países, com as quais a ortografia nada tem a ver.

Qual sua avaliação sobre as mudanças propostas pelo novo acordo?
As mudanças são muito poucas, para todos os países; no português do Brasil, apenas 0,5% das palavras terão a grafia alterada. As mudanças não são significativas: reincorporam-se as letras k, w e y ao alfabeto, sempre presentes em nomes próprios; elimina-se o trema, já usado por poucos; e mudam-se as normas para o uso do hífen – aquelas que ficam, no entanto, racionalizam muito pouco o complicado uso desse sinal. Alguns acentos também serão eliminados. Enfim, nada que realmente facilite a aprendizagem e o uso da ortografia no Brasil.

A desigualdade existente na formação dos professores do ensino básico pode aumentar o fosso entre parcelas da população na aquisição de maior competência no uso do idioma? A academia já está discutindo estratégias para fazer frente a demandas de requalificação dos professores de língua portuguesa?
Reiterando o que disse, as mudanças propostas para a língua portuguesa no Brasil são tão poucas e tão pouco significativas que não trazem grande conseqüência para a formação de professores do ensino básico. É necessário, sim, que a academia discuta – e urgentemente – a formação, qualificação e requalificação dos professores de língua portuguesa, sobretudo os das séries iniciais do ensino fundamental. Não para ajustar-se ao acordo ortográfico, mas para lutar contra os resultados precários que temos tido no processo de alfabetização e letramento de crianças e jovens.

Há quem use também um argumento econômico – a diminuição dos custos de produção de obras em diferentes versões – para defender o acordo. A senhora concorda com essa visão?
Os benefícios que o acordo ortográfico traria, segundo os que o defendem, são muito pequenos em relação ao ônus que dele decorrerá. Alega-se que a unificação ortográfica traria a diminuição do custo da produção de várias versões das mesmas obras, para ajustá-las a diferentes ortografias nos diferentes países. Em primeiro lugar, é preciso confrontar essa possível diminuição de custo com o grande aumento de gastos, em curto ou médio prazo, para a atualização dos arquivos das editoras, em todos os sete países. Em segundo lugar, é preciso avaliar se a circulação de livros, periódicos e documentos seria significativa a ponto de justificar esse ônus. E ainda, como diz o escritor moçambicano Mia Couto em recente entrevista, “as implicações que isso [o acordo ortográfico] tem do ponto de vista econômico acabam sempre por sobrar para os países mais pobres”.