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Nº 1622 - Ano 34
22.08.2008

opiniao

O olhar poético sobre as cotas

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Para enriquecer o debate sobre a política de cotas, aconselho a leitura do poema Gota do que não se esgota, de Luiz Silva (Cuti)**, publicado em seu livro Negroesia, em 2007. Considerado um dos grandes nomes da literatura afro-descendente, o poeta de Ourinhos (SP) empenha-se em demonstrar, no texto citado, os sentidos políticos da adesão às cotas por parte dos institutos de ensino superior.

Eis os versos iniciais do poema: “cota é só a gota/a derramar o copo/não a mágoa do corpo/mas energia represada/que agora se permite e voa/em secular esforço/de superar-se coisa e se fazer pessoa”. Para Cuti, a cota faz parte de uma série de reivindicações dos movimentos negros empenhados historicamente em promover os afro-descendentes na qualidade de portadores do próprio discurso, podendo, assim, ultrapassar de maneira contundente o problema histórico da invisibilidade social e dos perversos mecanismos de reificação. Infere-se da leitura do poema que a cota é uma medida de base civilizatória, visto que ultrapassa a noção de simples revide à barbárie escravocrata, ao se destacar como instrumento de inclusão dos afro-descendentes nos espaços consagrados à educação e à cidadania. Segundo o poeta, a cota não significa uma manifestação de rancor por parte dos negros, isto é, “a mágoa do corpo”, mas representa a liberação de uma “energia represada”: sinal evidente da grande intensidade da ‘onda negra’, que ainda encontra obstáculos, por parte do ‘medo branco’, para se manifestar plenamente.

Cuti justifica a cota ao ressaltá-la como um valioso indicador de justiça étnica, “ruindo pela base/a torre de narciso”. Ao se referir à universidade como “a torre de narciso”, sarcasticamente o poeta denuncia que só os brancos têm seu reflexo exibido no espelho do ensino superior, de forma tal que eles só conseguem admirar a si próprios, numa atitude de egolatria explícita, e ignorando os demais agentes que, para eles, destoam naquela paisagem acadêmica tida como bela e ideal. Leia-se como exceção à regra os negros, visto que estes constituem a minoria dos estudantes presentes no ensino superior. Constata-se, portanto, o que eu chamaria de universidade blindada.

Historicamente, coube aos brancos o acesso livre à educação e às instâncias institucionais do poder, enquanto restou aos negros amargar a exclusão deste processo. Em oposição a esse quadro lamentável, a cota abre alas para a comunidade negra acessar o que lhe é de direito. Tal política de ação afirmativa parte do princípio legal de promover a igualdade para os desiguais. Os agentes dessa luta reivindicam o direito de ser iguais, quando a diferença os inferioriza, e o direito de ser diferentes, quando a igualdade os descaracteriza. Baseado neste paradigma, Cuti associa a política de cotas ao universo regulamentar do direito e não à esfera do favor assistencialista. Esta tese é reforçada de maneira contundente na seguinte passagem do poema: “cota é só a gota/meta de quem pagou e paga/desmedido preço de viver imposto/e agora exige/seu direito a voto/na partição do bolo”.

De forma contundente e sagaz, o poeta destaca a existência de “um mar de dívidas/contraídas/pelos que sempre tornaram gorda a sua cota”. Notem que “o mar de dívidas” retoma todo o histórico de opressão vivido pelos afro-descendentes desde a instalação bárbara da lógica do “navio negreiro”. Já a “cota gorda”, ou seja, a “cota da desigualdade”, como diria o sociólogo Emir Sader, em texto publicado no Jornal do Brasil há cinco anos, representa a elevada margem de participação dos brancos, que tradicionalmente gozaram e ainda gozam de mais privilégios em relação aos negros no acesso à universidade. Esta não tem abraçado devidamente o princípio da diversidade. As estatísticas atestam “a cota gorda”, disfarçada de meritocracia, denunciada poeticamente por Cuti.

De acordo com o Ministério da Educação, tivemos em 2000 um quadro desigual de 2,2% dos formados nas universidades compostos por negros, e 80% de brancos. Segundo o Inep, em 2002, 3,8% dos jovens negros de 18 a 24 anos tiveram acesso à universidade; entre os brancos o percentual foi quatro vezes maior: 15,5%. Segundo destaca o advogado Fábio Konder Comparato, no artigo “Um débito colossal” (Folha de S.Paulo, 08/07/2008): “atualmente negros e pardos representam mais de 70% dos 10% mais pobres de nossa população. No mercado de trabalho, com a mesma qualificação e escolaridade, eles recebem em média quase a metade do salário pago aos brancos, e as mulheres negras, até metade da remuneração dos trabalhadores negros. Em nossas cidades, mais de dois terços dos jovens assassinados entre 15 e 18 anos são negros. Na USP, a maior universidade da América Latina, os alunos negros não ultrapassam 2%, e, dos 5.400 professores, menos de dez são negros”.

Como tentativa de equacionar esse “débito colossal”, as cotas têm como objetivo contribuir para um modelo educacional pautado por um projeto político de emancipação de um grupo historicamente excluído. Por isso, o autor do poema dedicado às cotas ressalta que elas ajudam a afrouxar as botas de um exército para o exercício da eqüidade. Não se trata, portanto, de um esforço para atender privilégios, mas para alcançar a tão almejada igualdade de condições entre brancos e negros. Nas palavras finais do poema de Cuti, a “cota não reforça derrota/equilibra/entre ponto de partida/e ponto de chegada/a vitória coletiva/reinventada”. Reparem bem: vitória coletiva. E não triunfo de uma só etnia.

*Jornalista. Mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor do curso de Comunicação e Marketing da Faculdade Promove de Sete Lagoas/MG

**A íntegra do poema pode ser lida na internet. Basta digitar, no Google, a seguinte expressão: Gota do que não se esgota, de Luiz Silva (Cuti)

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