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Nº 1638 - Ano 35
15.12.2008

opiniao

Ciência e pseudociência nos estudos
sobre a inteligência humana

Regina Helena de Freitas Campos*

A polêmica despertada pela recente visita do “pseudocientista” norte-americano Charles Murray à UFMG lembra capítulos anteriores do debate natureza-cultura na determinação das capacidades intelectuais humanas. Um desses capítulos ocorreu aqui mesmo em Belo Horizonte, nos anos de 1930, quando a psicóloga e educadora russa Helena Antipoff assumiu a direção do Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento de Professores. Uma das funções desse Laboratório era avaliar o desenvolvimento mental dos alunos das escolas públicas da cidade, com o objetivo de organizar classes homogêneas, conforme previsto na Reforma de Ensino Francisco Campos realizada em 1927/1928.

Para dar conta da tarefa, a equipe do Laboratório adaptou e padronizou para a população local um conjunto de testes de inteligência. Os resultados obtidos pelas crianças e adolescentes belo-horizontinos mostraram uma forte correlação entre o nível socioeconômico das famílias e os seus índices de desempenho. Helena Antipoff interpretou esses resultados a partir de observações semelhantes que havia feito quando da aplicação de testes entre crianças russas, no início dos anos de 1920. Na época, encarregada de cuidar de crianças que haviam perdido suas famílias em meio aos distúrbios sociais da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Comunista, ela observou a discrepância entre os supostos níveis de “inteligência” e a capacidade de resolver problemas práticos demonstrada pelos meninos e meninas que viviam nas ruas de São Petersburgo: “Extremamente espertas, revelavam prodígios de engenhosidade para lutar contra dificuldades que a vida lhes deparava”, assinalou em trabalho de 1931. Ao mesmo tempo, nos testes de QI, apresentavam atraso de 2 a 3 anos em relação ao padrão de sua idade.

Para explicar essas observações, Helena Antipoff propôs o conceito de “inteligência civilizada”, que descrevia o tipo de inteligência medida pelos testes de QI. A psicóloga partia da definição de Claparède: a inteligência como capacidade de resolver, pelo pensamento, problemas novos, ou seja, de intervir quando falham os outros instrumentos de adaptação de que dispõe o indivíduo – o instinto (a programação biológica) e o hábito (comportamentos já testados e bem-sucedidos em situações anteriores), envolvendo quatro elementos fundamentais: a compreensão, a invenção, a censura e a direção de pensamento. No entanto, os chamados testes de inteligência só muito imperfeitamente poderiam ser considerados medidas seguras dessas quatro capacidades, pois avaliavam apenas o nível intelectual geral na resolução de problemas fortemente influenciados pela cultura escolar. Sobre se essa inteligência medida pelos testes seria uma capacidade natural, sua resposta era negativa, pois a capacidade intelectual geral seria construída com a interveniência de fatores ambientais.

Foi assim que Helena Antipoff incorporou a influência da perspectiva sócio-histórica à teoria funcional sobre a inteligência aprendida em Paris e em Genebra e introduziu uma contribuição inédita na literatura sobre a medida das capacidades intelectuais. De acordo com seu ponto de vista, os testes de inteligência seriam instrumentos muito mais importantes para a avaliação das reais condições de vida e de educação das crianças do que propriamente da sua capacidade intelectual “natural”.

Antipoff também conhecia o trabalho de adaptação dos testes feito por psicólogos norte-americanos como Lewis Terman (1877-1956), que traduziu e adaptou o teste Binet-Simon para a população escolar norte-americana em 1916, e colaborou também na seleção de soldados norte-americanos durante a Primeira Guerra Mundial. Os resultados dessas aplicações em massa deram origem a vários estudos publicados ao longo dos anos de 1920, nos Estados Unidos, comparando a inteligência de diferentes grupos sociais e étnicos. Esses estudos, de validade científica duvidosa, constituem até hoje a base de trabalhos como os de Murray. Antipoff, contudo, fazia sérias restrições a esses trabalhos, exatamente por desconsiderarem a influência do meio sociocultural na determinação dos níveis de desenvolvimento mental ou o peso da cultura na própria elaboração dos testes de QI.

A psicologia contemporânea já acumulou muitos conhecimentos sobre as relações entre nível socioeconômico, educação e resultados nos chamados testes de “inteligência”, a partir de estudos e conclusões semelhantes aos de Antipoff na Belo Horizonte dos anos de 1930. As abordagens ambientalista, construtivista e histórico-cultural do desenvolvimento cognitivo podem ser consideradas, atualmente, plenamente bem-sucedidas na demonstração científica acerca da construção social e cultural das habilidades cognitivas humanas.

Por isso, só podemos considerar como pseudocientíficas as teorias que insistem em comparar mecânica e superficialmente os resultados obtidos por diferentes grupos étnicos ou sociais nos instrumentos de medida psicológica. O que impressiona nesses trabalhos é a arrogância dos autores e a falta de problematização do próprio conceito de “inteligência”, considerado indiscutível. Helena Antipoff já demonstrava, há 70 anos, como era limitado e mal definido esse conceito e o quanto a ciência psicológica lucraria sendo mais modesta e eticamente responsável em suas conclusões.

*Psicóloga, doutor em Educação pela Universidade de Stanford, EUA, professora de Psicologia da Educação na Faculdade de Educação da UFMG e presidente do Centro de Documentação e Pesquisa Helena Antipoff

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