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Nº 1665 - Ano 35
31.8.2009

opiniao

Recepção amarga

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Quarta-feira, 19 de agosto. Final da tarde, começo da noite. Avenida Abraão Caran, próximo à UFMG. Sinal fechado. No carro, estávamos minha esposa e eu conversando, quando fomos abordados por “calouros” que tinham os cabelos danificados, as roupas e os corpos sujos de tinta, além de apresentarem fisionomia frágil e abatida. Mal puderam curtir a tão sonhada aprovação no vestibular, tiveram que passar por mais uma prova de fogo. Para cumprirem à risca a ordem imposta de forma brejeira pelos “veteranos”, os novatos passaram horas e horas na mencionada avenida, pedindo esmola aos transeuntes em troca de paz e sossego, obtidos graças à obediência ao comando dos agentes do trote. Aflita, uma jovem, recém-aprovada no vestibular da UFMG, estendeu em nossa direção uma xícara e nos pediu qualquer quantia para se ver logo livre daquela constrangedora situação. Desconcertados, demos o dinheiro a ela. A moça, com o sorriso amarelo, prontamente agradeceu e nos disse em tom dramático: “Vocês salvaram a minha vida. Esse é o preço que pagamos para estudar na Federal”. Em seguida, o sinal abriu. Minha esposa e eu partimos para casa, atônitos com aquele fato indigesto.

A violência, física ou psicológica, não deveria fazer parte da recepção aos calouros na universidade. Mas faz. Nas primeiras universidades europeias, já existiam procedimentos de segregação aplicados pelos veteranos aos novatos. De matriz bárbara, o trote fez com que a universidade ficasse conhecida como o “calvário dos carecas”, sublinha o ensaísta e poeta Glauco Mattoso. Raspar o cabelo de um calouro e tratá-lo como “bicho” apresentam antecedentes medievais de culto à intolerância. Aqueles que já estavam estudando na faculdade percebiam o novato na condição de “bicho do mato” que precisava ser civilizado. Considerava-se que ingressava pela primeira vez na universidade, tinha uma formação precária, pois a educação formal concentrava-se nas mãos da Igreja Católica. Esteticamente, os novos ingressantes tinham, em geral, longos cabelos, unhas grandes e barbas compridas. Os veteranos, alegando possível transmissão de doença por parte dos calouros e necessidade de padronização comportamental, raspavam os cabelos, faziam as barbas e aparavam as unhas dos novatos, sendo estes considerados rudes e despreocupados com a higiene. Os “rituais de purificação” passavam também por dar banho aos calouros e, muitas vezes, as roupas deles eram queimadas.

No Brasil, um dos primeiros registros de trote violento data de 1831, com a morte de um estudante de Direito, em Olinda (PE). De lá para cá, os trotes têm assombrado o país. Em 1999, Edison Tsung Chi Hsueh, aprovado em medicina na USP, foi encontrado morto na piscina da faculdade depois do churrasco de recepção aos novatos. O crime permanece impune. Diante de tantas atrocidades cometidas sob o registro do trote, chegamos à triste constatação de que este ritual de batismo – só que de sangue – deveria atender pelo nome de coice universitário. Trata-se, portanto, de violência aplicada em doses cavalares por autênticos bárbaros, que usam da prerrogativa de estudantes de ensino superior para destilarem o seu veneno sádico e, assim, engessarem o ambiente escolar, que deve ser sadio, plural e respeitoso. Deposita-se a esperança de que os estudantes serão preparados na universidade para atuarem como pensadores e profissionais capazes de responder pelo avanço civilizatório da sociedade. Entretanto, o que esperar de quem não tem respeito pelo semelhante que inaugura uma vida nova? Quem servirá de referência para uma educação realmente superior, se as universidades abraçam em seu seio a banalidade do mal?

Quem ingressa na universidade é sobrevivente do “vestibular-titanic”, destaca o educador Rubem Alves, em Estórias de quem gosta de ensinar. Aprovados, os calouros são obrigados a passar por mais um tipo de prova: a do trote-trator, que é oferecido “cordialmente” pelos veteranos, em sinal de “boas-vindas” à universidade. Cabelos picotados e pintados, banhos de ovos, queimaduras nas pernas e nos braços, rituais de humilhação, sinais de truculência compõem o script tenebroso.

Severino Francisco, na crônica “Trotes violentos” (Correio Braziliense, de 2/3/2009), manifestou seu repúdio ao mencionado ato do qual foi vítima: “Ao chegar ao colégio, percebi uma movimentação dos estudantes em grupinhos que se formavam e se desfaziam conforme a chegada dos calouros. Eu nunca havia ouvido falar em trote. De repente, um grupo se aproximou de mim e perguntou se eu era calouro. Eu disse que sim e eles avançaram de tesouras em punho e latas de tintas nas mãos. Me desvencilhei e disse que não deixaria que eles cortassem o meu cabelo. Alguém me deu uma gravata por trás e outros cortaram o meu cabelo e jogaram tinta, que se misturou com o sangue. Consegui escapar e corri para dentro da escola. No intervalo da aula, vários alunos vieram me ameaçar: ‘Lá fora, a gente quer ter uma conversinha...’. Eu tive de sair no carro da diretora, com gente jogando pedras e pedaços de pau. Não cortei o cabelo, lavei com gasolina e deixei que ele crescesse torto por um ano como um ato simbólico de resistência”.

É inadmissível que, em um mundo atravessado pela violência, estudantes de ensino superior continuem dando verdadeiras aulas de pós-graduação em covardia, brutalidade, barbárie. Trote não é diversão, é humilhação. Deve ser riscado do mapa educacional. Diferentemente de serem intimidados por rituais macabros de truculência e boçalidade, calouros devem ser recebidos por veteranos de forma amistosa, para que todos possam trocar experiências lúcidas e lúdicas em prol da alteridade e da diversidade reflexiva.

* Jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG

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