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Nº 1670 - Ano 36
5.10.2009

opiniao

Umbigolândia

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Admitindo a possibilidade de que vivemos em uma sociedade do conhecimento, cabe ressaltar que a finalidade epistemológica tem se concentrado muito mais na conquista do reconhecimento do que na obtenção do autoconhecimento. Na sociedade globalizada e interligada, o isolamento dos homens vem se tornando um fenômeno cada vez mais constante. Frente a tais paradoxos, devemos perguntar: qual o lugar que se reserva para as relações entre os seres?

Crítico do individualismo, o músico-compositor Zeca Baleiro destaca, em Piercing (1999), a proliferação de ‘não-lugares’ marcados pela solidão e similitude, em detrimento do desenvolvimento da identidade singular e das relações interpessoais. Constituiu-se, em plena saturação da modernidade, o que chamamos de umbigolândia, termo inspirado na “etnologia da solidão” feita musicalmente por Baleiro.

No refrão da música, destaca-se a presença incisiva de uma voz de comando: “tire o seu piercing do caminho/ que eu quero passar com a minha dor”. Centrados em seus umbigos, os seres em questão se comunicam de forma precácia, uma vez que não há preocupação em olhar para fora, para o outro, que é compreendido como obstáculo a ser removido. O início da canção é marcado pelo sentimento de abandono do homem contemporâneo: “pra elevar minhas idéias/ não preciso de incenso/ eu existo porque penso/ tenso por isso insisto/ são sete as chagas de Cristo/ são muitos os meus pecados/ satanás condecorado/ na tv tem um programa/ nunca mais a velha chama/ nunca mais o céu do lado/ disneylândia eldorado/ vamos nós dançar na lama/ bye bye adeus Gene Kelly/ como santo me revele/ como sinto como passo/ carne viva atrás da pele/ aqui vive-se à míngua/ não tenho papas na língua/ não trago padres na alma/ minha pátria é minha íngua/ me conheço como a palma/ da plateia calorosa”.

Herdeiro do homem que suportava sua condição humana apoiando-se (primeiro) na religião e (depois) na ciência, o indivíduo contemporâneo agora tem sua rede de sentidos e expectativas concentrada no discurso da mídia, no consumismo e na necessidade desenfreada de exclusividade e notoriedade. Com isso, reforça-se o instinto de competitividade. Dá-se um adeus à beleza e à simplicidade (referência à dança na lama substituindo a dança na chuva), além de o sentimento coletivo de nação desembocar em total descrença diante da miserabilidade real (“minha pátria é minha íngua”). Sobra apenas a corrida pelo conhecimento específico e reduzido a know-how, não restando espaço para o conhecimento do outro e de si, como é mostrado nessa parte da canção: “eu tenho a palavra certa/ pra doutor não reclamar/ mas a minha mente boquiaberta/ precisa mesmo deserta/ aprender a soletrar”.

O músico se refere às relações amorosas, também consideradas como mais um produto a ser consumido e comercializado: “não me diga que me ama/ não me queira não me afague/ sentimento pegue e pague/ emoção compre em tablete/ mastigue como chiclete/ jogue fora na sarjeta/ compre um lote do futuro/ cheque para trinta dias/ nosso plano de seguro/ cobre a sua carência/ eu perdi o paraíso/ mas ganhei inteligência/ demência felicidade/ propriedade privada/ não se prive não se prove/ don’t tell me peace and love/ tome logo um engov/ pra curar sua ressaca/ da modernidade essa armadilha/ matilha de cães raivosos e assustados/ o presente não devolve o troco do passado/ sofrimento não é amargura/ tristeza não é pecado/ lugar de ser feliz não é supermercado”. Com o fetichismo da mercadoria, no qual se coisifica a pessoa e se personifica a coisa, perde-se de vista o estímulo necessário para as práticas sentimentais e filosóficas. A tentativa é de suportar todas as mazelas contemporâneas com algum produto para aliviar a dor. O supermercado, então, não é o paraíso nem lugar para ser feliz; lá se compra e se tenta preencher o vazio contemporâneo, compreendido por Baleiro como a “ressaca da modernidade”. Esta é definida pelo eu-lírico como uma armadilha, visto que a sensação de desconforto não se desfaz, pois a necessidade de consumir aumenta de forma avassaladora, constituindo um ciclo vicioso que leva a sociedade aos estados de perda da consciência (à demência) e de barbárie (matilha de cães raivosos e assustados).

Baleiro critica a relação “homem-consumo”, pautada pela busca constante do indivíduo por atingir um estado de completude que, como se sabe, não será obtido, devido à natureza lacuna que lhe é inerente. Daí a retomada do discurso cristão que aponta inferno e céu como expectativas humanas. Note-se que na descrição do inferno o verbo está no presente, e na descrição do céu está no futuro: “o inferno é escuro/ não tem água encanada/ não tem porta não tem muro/ não tem porteiro na entrada/ e o céu será divino/ confortável condomínio/ com anjos cantando hosanas/ nas alturas nas alturas/ onde tudo é nobre/ e tudo tem nome/ onde os cães só latem/ pra enxotar a fome/ todo mundo quer quer/ quer subir na vida”. Ao contrário de um tom esperançoso em relação ao futuro, as expectativas de melhoria também são mais um produto a ser consumido. A esperança é apenas mais um artigo na prateleira do supermercado, e sair do inferno para o céu significa “viver num confortável condomínio” e “subir na vida”. Coisificaram-se, portanto, não só as relações entre os homens, mas também a expectativa de vida, de convívio social.

Assim, Piercing tem como desfecho a contradição marcada ao mesmo tempo pela expansão da comunicação em grande escala e pela retração do diálogo nas microesferas sociais: “todo mundo sabe tudo todo mundo fala/ mas a língua do mundo ninguém quer estudá-la”. A comunicação interpessoal comprometida significa relações humanas inviabilizadas. Por isso, vivemos um momento social tão conturbado.

Jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG.

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