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Nº 1734 - Ano 37
18.04.2011

opiniao

BALAS DESNECESSÁRIAS

(Em memória das vítimas de Realengo, daqui e de todas as escolas...)

Edmar Alves*

“Onde nenhum caminho estava traçado, nós voamos” (R. M. Rilke)

Enquanto acontecia nos Estados Unidos estava distante. Mas chegou aqui do nosso lado. Nossas escolas estão sendo invadidas pelo mal que afeta a sociedade brasileira: a violência. Sou professor da Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais e na quinta-feira, 7 de abril, assisti estarrecido/triste/emocionado à brutalidade/selvageria na qual nossa sociedade está mergulhando.

A história todo mundo conhece: garoto (ou garota) calado, sozinho, rejeitado pelos colegas de escola. Recebe apelidos de que não gosta, mas não reage. Geralmente negro ou gay ou de outra cidade; gordo ou de orelhas grandes; ruim de bola ou manco da perna; cabelo crespo ou pobre; magro demais ou... apenas diferente. Diferente. É! Diferente como todos nós somos diferentes. Mas diferente “demais” para ser da turma, para ser descolado, para aceitar passivamente as humilhações. E é a bola da vez. Muitos abandonam a escola. (E quase ninguém percebe.) Outros são surrados e “expulsos” da escola. (E já é tarde demais para se perceber).

A história todo mundo conhece: para se afirmar na escola (e após algumas bombas), o valentão consegue ser o maior da turma e, cercado de outros, escolhe as vítimas (a esmo, não há nenhum critério científico): negro ou gay, de outra cidade ou gordo, de orelhas grandes ou ruim de bola, manco da perna ou de cabelo crespo, pobre ou magro demais ou... apenas diferente.

Bullying é o nome moderno dessa doença que, há décadas, ataca as escolas e a sociedade. Bullying é o nome moderno para a violência que penetra vagarosamente (nem tanto assim) em nossas escolas e sociedade. E quase não fazemos nada além de reclamar para nós mesmos ou para o colega do lado ou para o desconhecido no ponto de ônibus (sempre que não queremos propor mudanças reais recorremos a esse expediente). Nesse momento tem até deputado querendo mudar leis! Depois se esquece tudo e a vida volta à normalidade de sempre.

Esperamos sempre que alguém resolva, principalmente se este alguém não formos nós mesmos. Participamos deste jogo sujo. Nas brigas, somos a plateia. Se nos recusarmos a ser plateia, os lutadores voltam para as suas jaulas. Gritamos palavras de ordem ao menor sinal de “porrada”: p-o-r-r-a-d-a!!! E ninguém fica para limpar o sangue ou enxugar as lágrimas. Pois todos nós voltamos para as nossas jaulas. E amanhã é outro (ou o mesmo) dia. E aí vem a revanche. Queremos replay: um replay um pouco diferente. A vítima agora é outro.

Aos risos falamos da violência como se já fosse, além de normal, natural. Aos risos falamos de guerra. Ah! O Brasil não vale nada: nunca participou de uma guerra. Poucos (inocentes, cretinos, ignorantes) sabem que a bucha de canhão, a lenha que queima na guerra somos nós mesmos, nossos amigos, pais e irmãos. Mas (quase) tudo bem. Amanhã é outro (ou o mesmo) dia. E aí é pensar em armas mais potentes. E esperar a próxima.

Essa história todo mundo conhece: garoto calado, sozinho, rejeitado pelos colegas de escola. Diferente como todos nós somos diferentes (ou alguém aí é igual ao outro?). Dez ou 17, 340 ou 1.267 ou feridos ou doloridos ou expulsos ou abandonados ou lágrimas... Mas são só números. E números nós esquecemos logo. Sabemos pouco de matemática!

Essa história todo mundo conhece: para se afirmar na escola (e após algumas bombas), o valentão consegue ser o maior da turma; e cercado de outros, escolhe as vítimas (não há critérios claros): um diferente... Apenas um diferente. E daqui a pouco as vítimas são outros (as). E amanhã quase todos já esqueceram. Sabemos pouco de outros além de nós. Sabemos sobre nós?

Quem se admite fazer parte desse círculo vicioso? Quem admite rejeitar o “diferente” antes mesmo de conhecê-lo? Quem ri da diferença? Quem se acha mais e melhor? Quem é indiferente à dor do outro? Quem errou e admite que é necessário traçar outros caminhos?

Essas histórias todo mundo conhece: fracos e fortes, agressivos e solitários, diferentes e mais diferentes que outros... Todos se encontram na sala de aula, na quadra, no recreio, na saída da escola, na bala... e pronto! Caminhos antes diferentes agora se encontram num único e trágico capítulo final (alguns personagens seguem feridos, outros mortos; a sociedade é quem perde). Como em Realengo, como na Alemanha, como (principalmente) nos Estados Unidos. E agora é só chorar, pois amanhã é outro (ou o mesmo) dia numa outra escola. E todos somos inocentes: escola, sociedade, valentões, governos...

Não são apenas 10 ou 17, 340 ou 1.267 feridos ou doloridos ou expulsos ou abandonados ou lágrimas...

Um deles (as) era gay, mas tinha namorado (a); um deles (as) era negro, mas tinha um amigo índio; um deles (as) era um gordo, mas todos os dias dividia seu lanche com os colegas; um deles (as) era pai, mãe, irmão, sobrinho, amigo; um deles (as) era magro, mas bom de bola; um deles (as) era calado, mas bom de matemática e geografia; um deles (as) era pequeno, mas era o cara mais legal da turma, um deles (as), certamente, era uma pessoa especial para alguém; um deles (as) morava longe, mas conhecia um “carinha que mora logo ali”; um deles (as) era careca, mas conhecia outros que eram cabeludos; um deles (as) era diferente... mas, afinal, todos nós somos diferentes. E buscamos alguma semelhança em nossa humanidade em comum. Humanidade aqui entendida como todas as pessoas que nasceram e morreram; todas as pessoas que nasceram e ainda não morreram; e tudo o que nos cerca.

* Graduado em História pela UFMG. É professor das escolas estaduais Estudante Lívia Mara de Castro, em Betim, e Elza Mendonça Fouly, em Contagem

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