Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 3 - nº. 8 - outubro de 2005

Editorial

Entrevista
Boaventura de Sousa Santos

Ações afirmativas

Mais perto da justiça social

Um conceito em evolução
Newton Bignotto

Pólos de Cidadania

Cidadãos de fato e de direito

A cidadania como possibilidade
Márcio Simeone

Medicação

Antídoto para a “empurroterapia”

Farmácia, medicamento e saúde pública
Edson Perini

Conhecimento

A ciência onde o povo está

A divulgação científica
como instrumento de cidadania Ramayana Gazzinelli

Cultura

Livros a mancheias

Extensão e universidade cidadã
Edison José Corrêa

Idosos

Anjos da guarda da terceira idade

Mais velho, Brasil quer ser mais cidadão
José Alberto Magno da Fonseca

Enfermagem

A dor e a alegria de ser Maria

Diversa

Expediente

 

 

cultura

Livros a mancheias

Há 30 anos percorrendo bairros da periferia, o Carro Biblioteca da UFMG leva informação e estimula o hábito da leitura nas comunidades

Toda quinta-feira, pela manhã, Ignez Janine Pimentel, de 24 anos, percorre mais de dez quarteirões entre os bairros Industrial e Lindéia, na Zona Norte de Belo Horizonte. A longa caminhada beirando a linha férrea e algumas ruas em ladeira até a praça Dona Maria Tertulina é feita na companhia do pai aposentado. O esforço, numa rotina seguida há cerca de 13 anos, tem um motivo especial: tomar livros e revistas emprestados ao Carro Biblioteca da UFMG, um programa de incentivo à leitura da Escola de Ciência da Informação, que sobrevive há mais de 30 anos.

“Só falto se tiver um motivo muito forte mesmo”, diz Ignez, carregando uma sacolinha de plástico com seis livros e dois números da revista Seleções. Ela acredita já ter lido cerca de dois mil livros, com títulos e autores anotados em cadernos que guardam, às vezes, também resumos das histórias. Quando se trata de leitura, um gosto que adquiriu incentivada pela mãe, dona-de-casa, e pelo pai, ex-operário da siderúrgica Mannesmann, o Carro Biblioteca sempre foi a maior referência de Ignez.

“Eu consegui que muitos colegas fizessem ficha no Carro”, conta a moça, que completou o nível médio há cinco anos. Ela utiliza as fichas que estão em nome dos pais e de uma amiga para conseguir levar emprestados tantos volumes de uma só vez. Leitora voraz, Ignez garante que, quase todas as semanas, consegue ler todos os empréstimos, mesmo quando se trata de livros com centenas de páginas, como o romance Aeroporto, de Arthur Halley. “Esse é bem grande e, se não der para acabar, renovo o empréstimo, mas não fico nunca sem livros”, garante.

A presença do Carro Biblioteca no bairro Lindéia já ultrapassou a marca de 20 anos e esse nem é o lugar onde suas raízes são mais antigas. Esse Carro, na verdade um microônibus adaptado com estantes, que, a cada saída, leva um acervo de mais de dois mil volumes – entre livros, revistas, gibis e obras de referência –, é o mais antigo projeto de extensão do curso de Biblioteconomia da UFMG. Ele já passou por vários bairros da capital e, também, por outras cidades da Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Nos bairros Durante cinco dias da semana, o Carro Biblioteca estaciona em um bairro de periferia e, durante duas horas, atende a usuários que, comumente, são muito fiéis. “Não passamos um dia sem fazer novas fichas”, diz a bibliotecária Marília Martins de Paiva, responsável pela coordenação do serviço, ajudada por uma equipe de sete estagiárias que se revezam no atendimento . Com uma estrutura bastante simples, o Carro Biblioteca tem presença certa nos bairros Vila Pinho (Barreiro), Conjunto Santa Felicidade, São Benedito, Lindéia e Frimisa (Santa Luzia). Com exceção da Vila Pinho, onde o serviço se iniciou em outubro passado, todos os demais endereços de parada do Carro Biblioteca são antigos, contando entre dez e 20 anos.

A permanência longa nos bairros não era uma diretriz quando o serviço foi criado e, ainda hoje, se discute essa dinâmica. Segundo a professora Alcenir Soares dos Reis, coordenadora do programa Frente de Leitura e Cidadania, a que o Carro Biblioteca está vinculado, a manutenção do serviço durante muitos anos nos mesmos locais tem uma explicação simples: “Não se formam leitores de um dia para o outro. É um trabalho que depende de tempo e nem sempre é possível limitar um período”.

A idéia de contribuir para a formação de leitores sempre foi acompanhada de uma outra, tão importante quanto necessária às comunidades, atesta Alcenir. Para os articuladores do programa Frente de Leitura e Cidadania, ser uma referência quando se trata de estimular a leitura não basta. “A intenção é a de que a nossa presença estimule a criação ou o fortalecimento de uma biblioteca ou, mesmo, de uma sala de leitura, que atenda aos moradores em geral. Por isso, entrar no bairro é muito fácil, eles têm carências bem grandes, mas sair é difícil, já que a perspectiva é a de deixar algo instituído”, explica a coordenadora.

Em alguns lugares, como no Lindéia, foi estabelecido, anteriormente, uma data para a despedida do Carro Biblioteca, porém a comunidade não permite. “Nós temos compromisso com os usuários, com os moradores. Não dá para simplesmente dizer a eles que na outra semana não vamos estar mais lá”, reafirma Marília de Paiva. Durante os 32 anos de existência do Carro Biblioteca, foram poucos os lugares onde a comunidade conseguiu, paralelamente às visitas, mobilizar-se para a criação de espaços de leitura, admite Alcenir. “Não é fácil contribuir para que isso aconteça. Bibliotecas são caras, dependem de estrutura e de manutenção e o poder público nem sempre comparece”, assinala a coordenadora.

Do Carro à biblioteca própria Mesmo diante das dificuldades, usuários em Sarzedo (Ibirité) conquistaram uma biblioteca em parceria com a Escola Estadual Ernesto Carneiro Santiago. Dessa conquista, a UFMG participou ativamente, integrando trabalhos de mais de uma Unidade Acadêmica. Assim, o projeto arquitetônico foi feito pela Escola de Arquitetura e o treinamento de pessoal pela Escola de Ciência da Informação.

“Tentamos interlocuções com outras Unidades, projetos e programas, porque esse tipo de atuação faz parte da Universidade”, salienta Alcenir, apontando como exemplo de integração o projeto Telas e textos em ação – contos de mitologia. Executado em parceria com a Faculdade de Letras, o projeto leva aos usuários do Carro Biblioteca, uma vez por mês, contadores de mitos em forma de cordel. Ainda atua, em parceria com o projeto Pólo Jequitinhonha, também da UFMG, e com a Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais,em um programa de implantação de bibliotecas naquela região. O Carro Biblioteca participa de eventos no Museu de História Natural e Jardim Botânico, no projeto UFMG Jovem – Domingo no Campus e ainda viaja para o Festival de Inverno, em Diamantina.

Ao contabilizar os empréstimos realizados pelo Carro Biblioteca, Marília está certa de que o serviço tem conseguido alcançar seu principal objetivo – o de incentivar a leitura e criar novos leitores. Num espaço de seis meses – abril a setembro passados –, lembra a bibliotecária, mais de oito mil empréstimos foram registrados, sendo as crianças as beneficiárias mais importantes, porque se destina a elas mais da metade dos volumes emprestados. Esses números, afirma a bibliotecária, implicam um reflexo na comunidade difícil de ser medido, entretanto bastante visível na satisfação de quem conta com os serviços do Carro Biblioteca.

Para os pequenos e os grandes A cabeleireira Eunice Ribeiro, de 36 anos, diz que o Carro Biblioteca é “importantíssimo” para seus filhos Erik e Ariane, de 12 e 10 anos. “Eu freqüento há mais ou menos três anos. Gosto de pegar romances para mim, mas vejo mais a situação deles, porque, aqui, tem muita opção de literatura infantil”, diz ela. As crianças acostumaram-se ao serviço e acham que o Carro oferece mais vantagens que a biblioteca da escola. “Lá a gente só pode ficar com o livro dois dias, não dá tempo direito pra ler”, reclama Erik.

Aos sete anos, Ingrid Sáskia também destaca o tempo de empréstimo dos volumes superior ao da escola como vantagem extra e acrescenta uma outra: “Acho legal, porque a gente nem precisa pagar nada. Meus irmãos também podem pegar livro ou revistinha e a gente troca”, diz ela. Ingrid é levada ao Carro Biblioteca pela mãe Rosa Idália, de 34 anos, assim como os dois irmãos Pietro e Jordan, de cinco e dois anos. “O Carro é muito bom. A classe menos favorecida não tem como comprar livro. Aqui podemos encontrar o que não conseguimos comprar. E as crianças adoram”, ressalta.

Não ter custo com o prazer da leitura e preencher o tempo livre motivaram o porteiro aposentado Luiz José da Silva, 58 anos, a ser usuário do Carro Biblioteca nos últimos dez anos. “Venho toda semana. Antes, eu até comprava muito livro, mas não dá mais, nem para as minhas filhas. Elas têm ficha no Carro desde pequenas”, diz ele. “Aposentei muito cedo e, agora, passo os dias lendo”, conta Luiz, um leitor de livros de suspense. “Só acho que os livros deviam variar mais”, diz.

Conceição Bicalho

Renovar o acervo? A observação de Luiz traduz um dos maiores problemas do Carro Biblioteca. Sem verba própria para renovação do acervo, o serviço depende muito das doações e está limitado a uma coleção de cerca de dez mil itens – a cada viagem, são levadas, aproximadamente, duas mil opções de empréstimos, incluisive de revistas. De acordo com a bibliotecária Alcenir, nos últimos anos, o Carro Biblioteca não adquiriu novos títulos, especialmente lançamentos. Por isso, não é possível oferecer aos usuários as novidades do mercado literário. Nesse caso, o Projeto desdobra-se para atrair leitores com obras clássicas de ficção, contando, às vezes, com uma “ajudinha” da mídia.

“Quando passa uma novela ou outro programa baseado em obras clássicas ou livros que possuímos, divulgamos os títulos entre os tomadores de empréstimos e temos um retorno muito bom”, assinala Marília, ressaltando que o programa Frente de Leitura e Cidadania dispõe de um material de divulgação bem simples, contendo informações sobre o próprio Carro Biblioteca e dicas de leitura. O boletim, de tiragem mensal, é um produto de interlocução do Carro com os usuários e, também, entre comunidades.

Estimular os leitores é papel dos estagiários, que mantêm o Carro Biblioteca em ação nos bairros. “Não temos muito tempo, porque ficamos só duas horas em cada lugar, mas tentamos conversar com os usuários para perceber as demandas. Eles também sempre nos pedem material e quando isso acontece, fazemos algumas pesquisas”, diz Tatiane França Fernandes, de 20 anos, aluna do terceiro período do curso de Biblioteconomia. No Projeto desde abril passado, Tatiane destaca que o serviço está bastante incorporado aos bairros, mesmo não tendo uma divulgação muito ampla. “Quando faltamos, eles sempre reclamam e até ligam para saber o porquê”, afirma.

De carro novo Os problemas do Carro Biblioteca, quase sempre reflexo das carências maiores da própria Universidade – houve dias de ele não sair por falta de combustível –, não impedem novos planos e investimentos no programa Frente de Leitura e Cidadania. Com recursos de emendas parlamentares, um novo ônibus foi adquirido este ano e será equipado com livros, periódicos e, também, com recursos de multimídia e informática. “Hoje, para se ter acesso à informação, é necessário conjugar a biblioteca tradicional com as opções das novas mídias”, ressalta Alcenir. “O leitor precisa conviver com os meios de informação mais modernos”, insiste.

O novo ônibus, com elevador para portadores de deficiência, abrigará cinco computadores com acesso à Internet. Terá também televisão, vídeo, DVD, telão e carregará mobiliário para uso dos leitores. “Será um serviço diferenciado”, explica Alcenir, contando que ainda não foram definidos os lugares que o ônibus vai visitar. Porém, delimitar a política de permanência em cada lugar faz parte desse projeto. “O que pensamos é que o período deve girar em torno de três a cinco anos. Tudo será estipulado num trabalho conjunto com lideranças locais”, avisa a entusiasmada coordenadora.

Diversa - Revista da Universidade Federal de Minas Gerais - Ano 3 - nº. 8 - outubro de 2005