Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 3 - nº. 8 - outubro de 2005

Editorial

Entrevista
Boaventura de Sousa Santos

Ações afirmativas

Mais perto da justiça social

Um conceito em evolução
Newton Bignotto

Pólos de Cidadania

Cidadãos de fato e de direito

A cidadania como possibilidade
Márcio Simeone

Medicação

Antídoto para a “empurroterapia”

Farmácia, medicamento e saúde pública
Edson Perini

Conhecimento

A ciência onde o povo está

A divulgação científica
como instrumento de cidadania Ramayana Gazzinelli

Cultura

Livros a mancheias

Extensão e universidade cidadã
Edison José Corrêa

Idosos

Anjos da guarda da terceira idade

Mais velho, Brasil quer ser mais cidadão
José Alberto Magno da Fonseca

Enfermagem

A dor e a alegria de ser Maria

Diversa

Expediente

 

 

pólos de cidadania

Cidadãos de fato e de direito

Programa Pólos de Cidadania possibilita a moradores da periferia acesso aos benefícios da Justiça

Há dez anos, não passava de quatro professores e 16 alunos o grupo que se formou, na Faculdade de Direito, em busca do ideal de transformar os ensinamentos obtidos na sala de aula em algo factível aos olhos dos estudantes e, principalmente, próximo das demandas populares. Hoje, cerca de 80 pessoas estão envolvidas no Programa Pólos de Cidadania, que se tornou realidade não apenas no meio acadêmico mas, também, nas diferentes comunidades pobres onde está presente.

“Nossa atuação tem feito diferença para populações de excluídos e em risco. Esse é o grande ganho do projeto, que conquistou a confiança das comunidades e demonstra ter grande legitimidade”, assinala a professora Miracy de Souza Gustin, coordenadora do Programa. “O essencial, para nós, era aproximar o Direito de uma realidade que, na maioria das vezes, está bastante distanciada dos alunos. Por outro lado, era importante criar um projeto que privilegiasse a questão da inclusão das populações em risco”, afirma.

Vlad Eugen Poenaru

Segundo a coordenadora, a filosofia do Pólos de Cidadania previa, desde o início, uma atuação diferenciada e que não estivesse restrita, simplesmente, à prática do Direito. A equipe multidisciplinar, que, com o tempo, também se tornou interinstitucional, trabalha com a manifestação da cidadania nas relações individuais e coletivas. Professores, estudantes e profissionais estimulam, em suas ações, a compreensão de direitos e deveres, a necessidade de emancipação das comunidades, no sentido da ampliação das condições jurídico-democráticas e de organização, visando a uma inclusão efetiva.

Pesquisa/ação O Programa Pólos de Cidadania começou, em 1995, quase como um grupo de estudos e logo encontrou espaço de atuação como projeto de ensino, pesquisa e extensão universitária. Desenvolvendo metodologias próprias, apoiadas na técnica de pesquisa/ação – o que inclui a definição de ações após pesquisas e diagnósticos –, o Pólos de Cidadania envolve equipes das áreas de direito, sociologia, comunicação, economia, psicologia, arquitetura, administração, serviço social e artes cênicas. Apesar de nascido na UFMG, institucionalmente o Programa congregou outras comunidades acadêmicas – como PUC/MG, Fumec e Milton Campos – e é apoiado financeiramente pela Pró-Reitoria de Extensão da UFMG, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e por outros organismos públicos municipais, estaduais e federais.

Como um “guarda-chuva”, o Programa Pólos de Cidadania contempla projetos distintos, sempre com interlocução entre eles, e que atendem a populações com demandas diferenciadas. O mais antigo dos projetos, batizado de Núcleos de Mediação e Cidadania, está fortemente estruturado nos aglomerados Santa Lúcia e Serra, na Região Centro-Sul, e no Jardim Felicidade, no Norte da capital mineira. A iniciativa vive um momento de expansão, que prevê, a partir de um convênio com o governo de Minas, a criação de outras sete unidades na Região Metropolitana de Belo Horizonte e de mais oito em municípios do interior mineiro.

Os Núcleos de Mediação e Cidadania estão instalados em comunidades e trabalham sempre com dois tipos de equipes, formadas por profissionais e estagiários. Uma delas faz atendimentos individuais na sede do Núcleo, que, normalmente, abriga outros projetos públicos ou comunitários, e é integrada por um advogado, um psicólogo e um profissional de serviço social. “As pessoas sempre chegam procurando pelo advogado, mas o atendimento nunca é realizado apenas sob o ponto de vista do Direito, mas, sim, de acordo com a percepção dos profissionais sobre o problema ”, explica Sielen Barreto Caldas, subcoordenadora do Programa Pólos de Cidadania.

Soluções extrajudiciais Na mediação dos conflitos, ressalta Sielen, é preciso perceber a melhor forma de resolvê-los, entendendo o contexto familiar e social. “Por isso, o trabalho interdisciplinar é básico”, assegura. Os atendimentos individuais visam a definir soluções extrajudiciais, explica a advogada Vívian Barros Martins, 24 anos. Com os moradores do Santa Lúcia, Vívian trabalha há cerca de três meses; porém, durante quase três anos, participou, como estagiária, de projetos do Pólos de Cidadania. “Nossa intenção é a de sempre fazer acordos, mas os envolvidos devem construir em conjunto esses acordos”, diz.

Vívian explica que a metodologia utilizada nos núcleos preconiza o envolvimento das partes de maneira consistente, porque, só assim, os acordos extrajudiciais persistem. “É fundamental envolver as pessoas na solução do conflito, para que elas se sintam responsáveis pelo que foi acordado e para que estabeleçam métodos próprios de diálogo”, salienta. No processo da mediação, os profissionais do Núcleo nunca se comportam como representantes de uma das partes. “Isso é essencial, porque não apresentamos soluções que vão privilegiar um ou outro, ou mesmo nenhum dos dois, como, muitas vezes, acontece no Judiciário. A nossa expectativa é a de que as partes desenvolvam, durante a negociação, uma capacidade de crítica em relação aos seus próprios problemas”, esclarece a advogada.

Para isso, é necessário tempo e um acordo dificilmente é acertado antes de três encontros entre as partes, ressalta Vívian, lembrando que o trabalho dos Núcleos funciona muito no boca a boca e, também, repercute em programas de rádios comunitárias. “Quem já conseguiu fechar uma negociação, acaba trazendo outras pessoas. Elas chegam quase sempre por indicação de alguém que conhece o projeto”, conta. A Equipe de Mediação Interdisciplinar, defende a advogada, facilita a escuta.

“A distinta formação dos profissionais provoca olhares diferentes sobre os problemas. Muitas vezes, as demandas aparecem, inicialmente, com um apelo jurídico e descobrimos, durante os atendimentos, que não é bem assim. Esse olhar mais amplo é que faz com que nosso trabalho seja diferente, por exemplo, do do Judiciário, onde se privilegia a aplicação da lei”, analisa Vívian, destacando, porém, que, muitas vezes, a solução é realmente a via judicial. Nesse caso, os profissionais do Núcleo orientam e encaminham as pessoas para os órgãos competentes.

Segundo a assistente social Maria Izabel Pereira dos Santos, 30 anos, nos Núcleos, a perspectiva do Direito “é um pouco desconstruída”, pois a questão social perpassa todas as outras. “Temos uma visão mais completa dos problemas”, observa ela, que integra a equipe do Jardim Felicidade. Também ex-estagiária do Pólos de Cidadania, quando participou da pesquisa e do diagnóstico que precederam a criação do Núcleo no Aglomerado da Serra, Maria Izabel diz que as Equipes de Mediação funcionam como facilitadores do diálogo.

Das demandas que surgem, as principais envolvem atritos familiares, e o carro-chefe é a reivindicação por pensão alimentícia. Se os interessados firmam o acordo, explica a assistente social, o Núcleo de Mediação e Cidadania acompanha por um tempo o caso, dando apoio ao cumprimento das decisões.

Comunidade extremamente carente, o Jardim Felicidade conquistou o Núcleo de Mediação e Cidadania numa aproximação com o Conselho Popular de Defesa dos Direitos Humanos. “As demandas aqui sempre foram muito grandes”, lembra Antônio Soares Ruas, ex-presidente da entidade. Durante dois anos, a equipe do Pólos de Cidadania ocupou a sala que abrigava esse Conselho, mas, agora, está instalada na sede do Curumim, projeto social dedicado às crianças.

Unindo forças “As propostas eram bastante parecidas e, por isso, juntamos força”, diz Ruas, um entusiasmado defensor da presença do Pólos de Cidadania no Jardim Felicidade. “A comunidade só tem a ganhar, porque as equipes oferecem o que precisamos, que é muito diálogo e união”, assegura. Os profissionais do Pólo de Cidadania que trabalham fixos nos Núcleos estão conectados à chamada Equipe de Mediação Comunitária, composta por um orientador de campo e estagiários das diferentes áreas de atuação profissional.

Em contato direto com a comunidade, planejando e executando ações de organização coletiva, essa equipe apóia-se em canais formais e não formais de interlocução – como associações, escolas e entidades culturais. Estudante do quarto período de Direito, Maria Clara Moreira de Lellis, 21 anos, conta que o objetivo da mediação comunitária é a aproximação com lideranças, sempre planejando uma atuação conjunta. No Jardim Felicidade, a ação inclui o fortalecimento da Rede de Entidades de Apoio ao Desenvolvimento do Bairro, criada por uma ONG italiana que se afastou recentemente do processo.

No Jardim Felicidade, destaca Maria Clara, estão presentes 18 entidades que, de alguma forma, visam à integração de ações. A Mediação Comunitária, avalia a estagiária, dá um suporte muito grande à mobilização dos moradores para reivindicações coletivas. Segundo ela, muitas das demandas chegam ao Núcleo sem o viés do coletivo, mas os profissionais e estagiários percebem que as reclamações são recorrentes e atingem a comunidade em geral.

“Daí, a importância da nossa metodologia de pesquisa/ação, porque estamos sempre problematizando as questões com visão crítica, para que as comunidades se engajem nas soluções”, salienta Maria Clara. “Se temos vários casos no Núcleo de Direito do trabalho, a equipe mobiliza-se e dissemina o conhecimento sobre a questão de forma simples, para que as pessoas possam conhecer seus direitos fundamentais e específicos e, com essa visão, evitar novos conflitos”, explica a professora Miracy Gustin.

É nessa relação com a comunidade que outros projetos, tanto do Programa Pólos de Cidadania quanto de outras entidades, deslancham na comunidade. A Rede de Entidades de Apoio ao Desenvolvimento do Jardim Felicidade, conta Maria Clara, já percebeu a importância de se lidar com ações de geração de trabalho e renda e, por isso, estimula a realização de cursos, que têm a ver com o perfil dos moradores desse bairro.

Ao mesmo tempo, tenta aprofundar questões mais ligadas à organização política e socioeconômica, debatendo, em palestras e fóruns de discussão, cooperativismo e associativismo, temas que são alvo do Incubadoras de Cooperativas Populares, um segundo projeto do Programa Pólos de Cidadania, que se relaciona e dá suporte a outros. Em 2001, esse projeto foi responsável pelo diagnóstico da situação de catadores de papel em 14 cidades do Estado. O trabalho resultou na criação de algumas associações e cooperativas, como a de um grupo de trabalhadores em Contagem, na Região Metropolitana, que criou a associação em plena atividade.

“Os projetos do Pólos de Cidadania têm a característica de se relacionarem porque estão sempre muito atentos às demandas populares e trabalham na perspectiva de se criarem condições para o desenvolvimento de capital social e humano nas comunidades”, diz Sielen Caldas. A participação do grupo teatral A Torto e a Direito no Programa é um exemplo dessa orientação. Dirigido pelo professor Fernando Limoeiro, do Teatro Universitário, o grupo encena peças com temas que abordam preocupações comunitárias. O teatro é um “instrumento de mobilização”, assinala Sielem, e dos mais efetivos, porque chama a atenção para os problemas por meio do lúdico.

Legimitidade Para a professora Miracy, nesses dez anos de atividade, o ganho principal do Pólos de Cidadania foi a legitimidade. “No início, éramos recebidos com desconfiança e receio. As comunidades viam-nos apenas como um grupo que ia pesquisá-las”, recorda. Agora, os projetos têm grande respaldo nas localidades, na própria UFMG e nas outras instituições parceiras. “Conseguimos, também, o respeito das instituições de financiamento”, garante a coordenadora e uma das idealizadoras do Programa.

Além de projetos em andamento na Vila Acaba-Mundo, Região Sul da capital, e com grupos sociais – como moradores de rua e portadores de doença mental, o Pólos de Cidadania também está articulado a um grande programa de combate à exploração sexual infanto-juvenil no Vale do Jequitinhonha. Este ano, o Ministério da Justiça – Secretaria de Direitos Humanos – destinou R$ 500 mil para ações que visam a desenvolver alternativas de prevenção à dura realidade que atinge crianças e adolescentes na região.

O projeto 18 de Maio é fruto de outro trabalho desenvolvido em 2003, na mesma região, em conjunto com o projeto Pólo de Integração da UFMG no Vale Jequitinhonha, cuja temática também privilegiava a violação dos direitos de crianças e adolescentes. Nessa época, foram realizados diagnósticos da situação em 13 cidades do Médio Vale do Jequitinhonha e elaborados planos de ação, em conjunto com a sociedade e as administrações públicas, para o fortalecimento das redes de atendimento a crianças e adolescentes. Agora, o Pólos de Cidadania volta à mesma região com a proposta de construir com as populações – a partir das crianças e de suas mães – caminhos que ajudem a mudar o panorama da exploração infantil na região mais pobre de Minas Gerais.

O povo fala “O Núcleo e muito importante para nós, porque lá a gente é bem tratado e as coisas se resolvem”, diz a faxineira Iara de Souza Amaral, de 56 anos. Moradora no Aglomerado Santa Lúcia, há dois anos, ela procurou o Núcleo, atrás de advogados. “Estava vendendo uma casa lá no Palmital e eles me ajudaram. Não tive de entrar na Justiça. A gente fez tudo amigavelmente e dona que comprou me pagou direitinho, não tive nenhum problema”, conta.

Determinada a se aposentar, Iara quer conhecer seus direitos. “Vou de novo lá, porque tenho tido dificuldade para conseguir a aposentadoria e acho que o pessoal do Núcleo pode me orientar”. Ela acrescenta que pretende, também, ajudar o filho, Gedeon, de 25 anos, a se aposentar. “Ele sofre de epilepsia e a moça lá do Posto de Saúde disse que, por isso, ele tem direito”, diz.

A venda de uma casa foi, igualmente, o motivo que levou Marlene Nazário de Oliveira a procurar o Núcleo. Ex-vizinha de Iara, ela acha que a solução “não podia ser melhor”, porque o negócio que fez com uma proprietária em Santa Luzia, na Região Metropolitana, não lhe deu dor de cabeça. “Troquei de casa e fiquei mais de um ano indo lá no Núcleo. Todo mês, a dona pagava na frente do advogado. Os recibos, os papéis, tudo foi resolvido no Núcleo. Eu adorei o jeito de eles me atenderem”, afirma.

Mesmo morando em Santa Luzia, Marlene está novamente em contato com o Núcleo, porque quer resolver em vida o problema da herança familiar. “Nunca pensei em procurar a Justiça”, garante. Agora, o exemplo de Marlene estendeu-se a outro membro da família – ela incentivou o filho, de 19 anos, a contatar o Núcleo de Mediação e Cidadania. “Ele precisa resolver um problema de pensão com o pai dele, mas, como já tem mais de 18 anos, vou deixar que ele mesmo procure.”

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