Em conferência na UFMG, magistrada do STF afirma que juventude de hoje se vê preocupada tanto com o aperfeiçoamento quanto com a sobrevivência da democracia

“Todo aquele que viveu na ausência de luz sabe o valor do Sol”. A metáfora foi usada pela ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), para comparar os tempos de democracia com os períodos de autoritarismo. Em conferência no auditório da Reitoria, realizada nesta sexta-feira, dia 7, a magistrada celebrou os 34 anos de promulgação da Constituição Federal (CF), a Constituição Cidadã de 1988, que ela considera um marco na democracia e na “recriação” do Estado brasileiro.

Cármen falou para uma plateia que lotou o auditório da Reitoria, com transmissão para o auditório nobre do CAD, que, por sua vez, recebeu mais algumas dezenas de pessoas – muitos delas jovens, interessadas em ouvir as reflexões dessa mineira de Montes Claros sobre O futuro do país e das instituições democráticas, tema da conferência promovida no âmbito do ciclo Futuro, essa palavra, que comemora os 95 anos de fundação da UFMG.

“Os jovens de hoje vivem sob a égide da CF. Muitos começam, agora, não apenas a se ocupar com o aperfeiçoamento permanente da democracia, mas a se preocupar com a sobrevivência dela. Isso é uma novidade para a juventude brasileira”, observou a magistrada, contemporânea de uma época em que se lutava pelo estabelecimento de um regime democrático. “Em abril de 1977, fiz uma prova de Direito Constitucional com o Congresso Nacional fechado, sei bem o que é a falta de liberdade”, testemunhou.

A ministra lembrou que, até o fim do século 19, a democracia dizia respeito, exclusivamente, à garantia do direito de ir e vir e da proteção dos cidadãos pela polícia. Com o passar do tempo, assegurar, meramente, as liberdades individuais passou a não ser o bastante, e garantias coletivas e sociais entraram na pauta. A promulgação da CF, já no fim dos anos 1980, foi o marco temporal a partir do qual a ciência das leis que regem o país deixou de ser privilégio exclusivo do universo do Direito.

“O Estado foi sendo recriado para que a gente tivesse mais oportunidade de ser feliz. O Direito é um instrumento que, por si só, não é capaz de nos fazer feliz, mas possibilita as condições para cada um se fazer feliz. Aquela liberdade garantida num primeiro momento foi sendo recriada, reconstruída, reinventada por uma sociedade que quer cada vez mais”, discorreu.

‘Ações transformativas’
De acordo com Cármen Lúcia, a CF de 1988 foi concebida com base em um compromisso que os deputados constituintes firmaram com o futuro, e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) constituiu-se em um dos exemplos mais engenhosos desse pacto.

Para Cármen, a Constituição de 1988 também abriu caminho para conquistas mais recentes, como o sistema de cotas e as ações afirmativas. No entanto, ela defende que esse processo continue avançando. “Hoje, queremos ‘ações transformativas’. É preciso transformar para humanizar”, acrescentou. Isso inclui, segundo ela, “conceder espaços para que sejam igualados aqueles que foram segregados historicamente, como negros, indígenas e mulheres”. “Que nós possamos nos igualar na nossa condição humana, que é única”, conclamou.

Respeito à verdade e fé na democracia
Cármen Lúcia alertou para a urgência de se restabelecer no Brasil o respeito à verdade. Para ela, os ruídos de informação inerentes à multiplicidade de canais e tecnologias de comunicação representam o maior desafio dos brasileiros nesse sentido. “Recebemos inúmeras mensagens, e não temos ideia se elas vêm de um bot, de um computador ou de um ser humano. Acreditem que vocês são capazes de aprimorar a informação que recebem, para que possam tomar suas decisões”, recomendou à plateia.

Em seu entendimento, “os desafios dos tempos de hoje, que não são um tempo fácil”, têm como mais grave implicação a configuração de uma crise na própria democracia. “Mas é importante ter em mente que a crise é um desequilíbrio momentâneo, que vai passar. A crise da democracia não há de significar, em nenhum momento, uma ruptura com ela, porque não há melhor modelo para se viver”, defendeu a magistrada.

Trajetória
Ministra do STF desde 2006, Cármen Lúcia é a segunda mulher a ocupar o posto. De 2016 a 2018, ela exerceu a presidência da corte. Antes, nos anos 2012 e 2013, ela havia presidido o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em agosto de 2022, foi reconduzida ao cargo de ministra eletiva do TSE. É professora titular de Direito Constitucional na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Ex-aluna da UFMG, onde concluiu o mestrado em Direito Constitucional, em 1982, Cármen Lúcia recebeu a Medalha de Honra da universidade em 2016.

[Matheus Espíndola]