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Nº 1394 - Ano 29 - 01.05.2003

 

 

A carga horária da licenciatura

Marcio Quintão Moreno*

 

Conselho Nacional de Educação (CNE), em decisão de 2001, homologada pelo então ministro Paulo Renato Souza, fixou em 2.800 horas a carga horária mínima dos cursos de licenciatura.

Pretendo questionar tal decisão do CNE, apontando algumas de suas incongruências e os efeitos negativos que dela decorrerão, a partir de minha experiência como professor de licenciatura em Física, mas acredito que meus argumentos valham para outras licenciaturas.

Na década de 1970, o antigo Conselho Federal de Educação (CFE) estabeleceu em 2.880 horas a carga horária da licenciatura em Física, a partir de um brilhante "raciocínio": um aluno "pode" assistir a quatro horas de aulas diárias, seis dias por semana. Como o ano letivo tinha 30 semanas, e o curso "dura" quatro anos, fatalmente a carga horária "tem" de ser de 2.880 horas/aula. A decisão do CNE atual parece ter-se fundado no mesmo "raciocínio", com a diferença de que hoje o aluno "só" pode assistir a 3,5 horas de aula por dia num universo de 200 dias letivos por ano.

1) A decisão parece revelar a crença de que o aluno só aprende na presença do professor, enquanto estiver sentado numa sala de aula ou num laboratório de ensino. Ignora a existência de recursos como os computadores pessoais e a Internet, além de traduzir uma visão muito pobre do aluno brasileiro, pois em países europeus e nos Estados Unidos, mesmo na década de 70, cursos semelhantes requeriam carga horária muito inferior às 2.880 horas estabelecidas pelo CFE. E revela tacitamente a suposição de que curso superior deve ser enciclopédico para ser bom.

No caso da licenciatura em Física, a comissão encarregada de estudar a questão, formada por professores universitários de grande experiência, mencionou em seu relatório, com propositada imprecisão, que o curso deveria durar "cerca de 2.400 horas", incluída a formação pedagógica. Tal recomendação parece ter sido ignorada pelo plenário do CNE. Os defensores das cargas didáticas enciclopédicas pretendiam fixar em 3.200 horas (!) a duração das licenciaturas, alegando a necessidade de "prestigiá-las". De minha parte, julgo que o prestígio de um curso universitário se traduz na qualidade e dedicação ao ensino do seu corpo docente, assim como nas condições de trabalho oferecidas aos diplomados: salários atraentes, encargos letivos razoáveis, existência de recursos como laboratórios didáticos, bibliotecas, etc.

2) O emérito CNE também fixou em 400 horas a carga de estágio ou prática de ensino para os licenciandos, qualquer que seja o curso. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em seu artigo 65, diz mais sensatamente que "a formação docente, exceto para a educação superior, incluirá prática de ensino de, no mínimo, 300 horas". Também aqui predominou o exagero ou o otimismo desvairado. Em outras carreiras, tal exigência ou outra semelhante talvez já esteja sendo aplicada com êxito. No caso da licenciatura em Física - e talvez nas demais a situação seja semelhante - sabe-se da dificuldade de assegurar aos licenciados algumas dezenas de horas de estágio nos colégios.

3) Os licenciados pela UFMG nos cursos já incluídos no Provão têm invariavelmente obtido conceito A, embora a carga horária de nossas licenciaturas seja muito inferior a 2.800 horas. Será que o Provão não apura nada, e temos nos iludido atrozmente?

4) O argumento mais importante, no entanto, é o seguinte: quais os estudos de aprendizagem que demonstram a necessidade de 2.800, 10.000 ou 1.200 horas para formar um professor de Física, de Geografia, de Português ou de Matemática? Quais estudos demonstram que todos eles, em áreas de conhecimento tão diversas, requerem o mesmo número de horas de ensino? A história da ciência revela que acreditar nisso é pura ilusão, pela simples e excelente razão de que não existe um método único de fazer ciência. Gostaria de conhecer tais estudos, mas até então tenho o direito de julgar que se trata de puro achismo, ao qual anteponho o meu achismo, fundado em 40 anos de ensino na licenciatura de Física.

5) A LDB também determina, em seu artigo 47, parágrafo 4º, que "as instituições de educação superior oferecerão, no período noturno, cursos de graduação nos mesmos padrões de qualidade mantidos no período diurno, sendo obrigatória a oferta noturna nas instituições públicas, garantida a necessária previsão orçamentária."

A vigorar a carga horária fixada pelo CNE, pode-se temer que na UFMG os licenciados de cursos noturnos precisarão de cinco anos para concluí-los, já que nossas licenciaturas empenham-se em cumprir esse preceito da LDB. Tornar-se-á ainda mais difícil corrigir a atual carência, em nosso ensino médio, de professores de formação adequada para Física (e História, Química, Geografia...).

Por todas essas razões, parece-me que não devemos aceitar passivamente as decisões do CNE, que, como o antigo CFE, costuma ignorar nossa experiência de tantos anos no ensino das diversas licenciaturas e as possibilidades reais das instituições. Não podemos e não devemos renunciar ao estatuto da autonomia universitária estabelecido na Constituição Federal, particularmente no que se refere à liberdade de ensinar e de organizarmos os cursos que ministramos segundo critérios fundados em nossa competência.

*Professor voluntário do departamento de Física do ICEx