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Nº 1426 - Ano 30 - 12.2.2004

 

 

/ Benedito Nunes

O caracol que desafia o mundo

Murilo Gontijo

rofessor aposentado da Universidade Federal do Pará (UFPA), filósofo e literato, Benedito Nunes é um dos mais respeitados intelectuais brasileiros da contemporaneidade. Esteve à frente de movimentos vanguardistas, discutiu a fundo poesia e filosofia, estabeleceu relações entre esses dois campos e transformou-se em referência para os estudos literários brasileiros. Aos 74 anos, continua morando em Belém (PA), onde pesquisa e redige suas análises. "Talvez seja um caracol dentro de sua casca", brinca, minimizando o alcance mundial de sua obra, que inclui centenas de artigos, estudos e livros.

Em 1963 _ "quando ainda tinha muitos cabelos e não usava óculos"_ Nunes participou da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda realizada no então recém-inaugurado prédio da Reitoria da UFMG, ao lado de dezenas de poetas brasileiros vinculados à vanguarda estética daquele período, como Affonso Ávila, Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Laís Corrêa de Araújo, Luiz Costa Lima e Paulo Leminski. No início deste mês, Benedito Nunes retornou à UFMG para participar de uma banca de defesa de doutorado e visitar o Acervo de Escritores Mineiros, onde concedeu a seguinte estrevista.

Como o senhor avalia o estágio atual da arte contemporânea e o que acha das críticas que Afonso Romano de Sant´Anna faz às vanguardas, especialmente as visuais?

Não posso falar das críticas de Afonso Romano de Sant´Anna, porque não conheço as avaliações dele. Mas, há muito tempo, quando publiquei o livro Introdução à Filosofia da Arte, já percebia um conflito latente e mencionei certos dilemas da arte conteporânea, momentos difíceis com as quais ela se deparava. Naquele momento, o que se tinha em vista era uma espécie de caminhada da arte para uma auscultação interna, independentemente dos conflitos existentes à época. Uma espécie de conhecimento que ela teria de si mesma de acordo com um prognóstico feito em Dr. Fausto, de Thomas Mann. O que se esperava do artista e da própria arte era uma grande lucidez, o retorno a determinadas fontes que resultasse no domínio da inteligência sobre o sentimento. Entretanto, isso não se deu. Muitos padrões foram quebrados e a arte vive hoje um momento de errância. Reabriu-se a sua caminhada, não no sentido da lucidez a conquistar prevista pelo personagem de Thomas Mann, mas num círculo de retomada do passado, imitando aquilo que já foi feito e tentando encontrar um novo. Mas isso muitas vezes transforma-se em rotina. E não deixa de ser embaraçoso constatar que o novo buscado repetidamente se rotiniza.

O senhor participou da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, realizada na UFMG, em 1963. Que balanço é possível fazer da poesia brasileira nesses últimos 40 anos, consolidadas as lições do modernismo e concluídas as experiências das vanguardas dos anos 60/70?

Em 1963, iniciávamos a reflexão sobre o sentido de vanguarda e os próprios poetas vanguardistas começavam a seguir outros caminhos. O anunciado desaparecimento do verso não aconteceu. Ao contrário, os poetas vanguardistas o retomaram, cada qual ao seu modo. Cito a maravilhosa experiência de Haroldo de Campos, naquele grande poema circular: Galáxias. O que se observa, além do desaparecimento de uma vanguarda normativa, é a persistência de muitas fontes que conservam a reflexão sobre as obras, por exemplo, de Carlos Drummond de Andrade e de João Cabral de Melo Neto, "nortes" da poesia nacional.

Na condição de filósofo e de estudioso de literatura, como o senhor analisa as relações entre a reflexão filosófica e o texto literário e como transita entre esses dois pólos?

Há uma relação íntima entre poesia e filosofia que vem desde a antigüidade grega. A filosofia teria nascido da poesia e posteriormente houve um distanciamento entre elas. Nos tempos atuais, há uma reaproximação, que veio se concretizar no domínio que valoriza o mito e os sentimentos: a filosofia da existência. De certo modo, tal posicionamento anunciou-se por diferentes expoentes, seja Jaspers ou Heidegger. Este, por exemplo, pensava a direção da poesia. Para transmitir sua filosofia, Heidegger escrevia como poeta. Há momentos, inclusive, em que páginas dele são divididas: de um lado versos; de



outro, aforismos. Filosofia e poesia também se aproximam na apropriação da linguagem. Ambas podem usá-la para convencer o outro.

O senhor representa um caso raro de intelectual que alcançou projeção nacional sem deixar sua província, o Pará. Como avalia a relação entre centro hegemônico e periferias em um mundo globalizado?

No Brasil, a distinção entre centro e periferia relativizou-se muito a partir dos anos 50 e 60. Até esse período, a hegemonia do centro motivava a saída da província. Era uma migração obrigatória. Todos os escritores repetiam a velha canção "Tomei um Ita no Norte". Eu fiquei, afinal, menos pela província e mais por apego à minha casa, o lugar onde trabalho. Talvez eu seja um caracol dentro de sua casca (risos). Hoje, a globalização toma um sentido predominantemente econômico. Essas relações, no entanto, talvez possam realizar aquilo que, suprimida essa predominância econômica, seja a unificação da espécie humana pelo direito. O fundo utópico ainda está de pé. Temos que superar a dominação econômica dos países ricos sobre os pobres. Aí não teremos a utopia realizada, mas o melhor fruto da espécie.

Foto: Benedito Nunes: poesia e filosofia