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Nº 1509 - Ano 32
17.11.2005

Por uma ciência sem dogma

Sávio Tores de Farias*


esde o florescimento da consciência humana, o ho- mem busca encontrar um significado de mundo e, entre tantas visões, a religião teve e ainda ocupa lugar de destaque na explicação da existência humana e do funcionamento do mundo. Neste âmbito explicativo, todas as expectativas são depositadas em um ser supremo e inques­tionável, restando ao homem uma busca eterna destes ideais. Desta relação entre o homem (mortal e pecador) e este ser supremo (eterno e detentor da verdade absoluta), nasce uma confiança inquestio­nável do primeiro sobre os ensina­mentos do segundo.

Na eterna busca pela verdade, surgiu um novo modo de conhecer o mundo, que não mais se baseia em divindades ou em explicações metafísicas, e sim na observação sistê­mica dos fenômenos que circundam o homem e o meio onde ele vive. A este novo modo de conhecer o mundo chamamos de ciência. Ela permitiu que o homem demolisse mitos existenciais, consolidando-se como ferramenta extremamente útil na busca das verdades encobertas sob as cortinas do misticismo.

Hoje em dia, podemos comprovar a força das afirmações científicas no nosso cotidiano. Quem nunca usou, como argumento de convencimento, a expressão "isso foi comprovado cientificamente”? Ou, ainda, quem nunca viu propagandas de produtos que usam termos ligados à ciência (o DNA, por exemplo) como certificadores de eficiência do produto?

Outro exemplo é a tentativa de “validação científica” de antigas crenças religiosas. A que vem ganhado maior visibilidade na mídia é a Teoria do Design Inteligente, que procura dar nova roupagem ao criacionismo. Com ela, seus defensores tentam reafirmar velhas crenças, baseando-se no princípio científico, aceito como o mais verdadeiro nos dias de hoje.

Partindo dessas observações do cotidiano, me ocorre uma estranha sensação de inquietude diante do processo de dogmatização da ciência, visto que um dos principais princípios da metodologia cientifica é a constante discussão dos resultados e a possibilidade de falseá-los em detrimento de novas observações realizadas. Neste contexto, identifico alguns agentes na formação desta imagem de verdade absoluta que vem surgindo no senso comum.

De um lado, temos o próprio cientista, que muitas vezes impõe seus resultados de forma arrogante, como se fosse a nova encarnação de um ser inatingível em suas proposições, surgindo assim o mito de um “deus cientista”, um ser respeitado e inquestionável em suas afirmações. Esta posição assumida por alguns pesquisadores provoca uma incompatibilidade de linguagem, aumentando ainda mais o abismo entre os mundos científico e não-científico.

De outro, temos uma sociedade que clama, ainda que forma difusa, por uma maior participação nas ações e discussões que envolvem direta ou indiretamente seu bem-estar. Mas o que observamos é que ela se exime de qualquer responsabilidade de julgamento e ação, abstendo-se de culpa, ao aceitar, sem maiores questio­namentos, os resultados oferecidos pela ciência. Mas, quando se vê confrontada por questões éticas e culturais envolvendo avanços científicos, a sociedade – ou setores expressivos dela – reage da pior forma possível. Ela simplesmente nega esses avanços, seja porque não compreende a metodologia científica ou porque está impregnada de preconceitos e idéias místico-religiosas.

Neste contexto, em que a ciência aparece dogmatizada no senso comum, sendo aceita sem questiona­mentos ou negada por crenças, é preciso aumentar o diálogo entre os cientistas e a sociedade em geral, na busca de uma maior compreensão do método científico. Esta é a maior contribuição que a ciência pode oferecer à sociedade, fazendo com que esta não apenas aceite inquestiona­velmente o produto final gerado pela primeira – até porque este resultado, na medida em que se aumenta a compreensão do mundo, está sujeito a modificações –, mas discuta a confia­bilidade dos meios que levou ao alcance daqueles fins.

O cientista tem o dever de simplificar e popularizar seus métodos, quebrando a imagem de dono de uma verdade absoluta, que contraria o próprio método científico. Enquanto isso, a sociedade precisa abrir seu pensamento, e o indivíduo deve buscar o conhecimento das inovações que lhe são impostas diariamente e avaliá-las à luz dos valores e da cultura em que está inserido. Só assim, a sociedade terá condições de participar efetivamente da tomada de certas decisões e a certeza de que elas contribuirão para o seu progresso e bem-estar.


Dogma: ponto fundamental e indiscutível de qualquer doutrina ou sistema.



*Aluno de doutorado em Genética da UFMG

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