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Nº 1509 - Ano 32
17.11.2005

Solo fértil para as ciências

Ludmila Rodrigues

História da ciência é uma das áreas do conhecimento mais propícias às interseções de conceitos e idéias. A área é rica em múltiplas relações e sua atuação e diferentes investigações ajudam a compreender a formação das culturas e sociedades.
Foca Lisboa

Flávio Edler: superespecialização inibiu
o diálogo científico

No seminário História da Ciência, realizado em outubro na UFMG, questões e conceitos sobre a heterogeneidade da área foram discutidos por pesquisadores. Na ocasião, o presidente da Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, Flávio Coelho Edler, concedeu entrevista ao BOLETIM, na qual discutiu os conflitos que a área enfrenta e a superespecialização da ciência.


Como o senhor vê a interação das ciências?
A partir do século 20 há uma tendência de fragmentação e de superespecialização das áreas do conhecimento. Para além da divisão tradicional, em ciências e humanidades, há várias subdivisões dentro de cada um desses grandes ramos do conhecimento. Ocorre um refinamento crescente de objetos científicos, uma aposta em um conhecimento cada vez mais profundo em áreas específicas. Mas, cada vez mais, os pesquisadores percebem uma deficiência quando relacionam seus temas com todo o gradiente do conhecimento. Um ultraespecialista é incapaz de se deslocar do seu campo específico de ação. Há uma tensão endêmica em todas as áreas do conhecimento associada a esse aprofun­damento da superespecialização.

A comunidade científica tem tentado várias soluções para esse problema, e uma das saídas é a multidis­ciplinaridade, que tenta interligar áreas do conhecimento. A história da ciência lida também com essa ambivalência. Esse campo foi historicamente constituído por pesquisadores descontentes ou que buscavam encontrar as origens de produção do conhecimento. Mais recentemente, a área profissionalizou-se e isso acabou levando ao aparecimento de alguns entraves. Há, cada vez mais, estudiosos e comunidades que discutem a história, o desenvolvimento de conhecimento de algumas áreas temáticas, mas esses profissionais que conhecem a história, digamos, da matemática, da física e da química pouco dialogam com os profissionais dessas respectivas ciências.

De que forma a ciência procura minimizar os efeitos da superespecialização?
Várias propostas, nos últimos 30 ou 40 anos, vêm buscando resolver o grave problema da superespecialização e da ausência de diálogo entre as especialidades. No campo da saúde, acontece uma coisa curiosa. Há cerca de 40 anos, os médicos monopolizavam a história da Medicina e era muito difícil a quem não fosse da área adentrar nesse ramo. A partir dos anos 70, em função da hiperes­pe­cia­lização, quando a Medicina perde seu caráter mais liberal e se torna uma profissição técnica, ocorre uma falência desse grande projeto de instaurar uma história do campo da saúde. A partir dos anos 80 e 90, novos profissionais ingressam no campo da saúde e uma ambi­valência se cria. Além dos médicos, enfermeiros, nutricionistas e todo o pessoal da área da saúde, que conhece sua práxis, essa área passa a contar com sociólogos, historiadores, antropólogos, que refletem a respeito da prática. Isso, no entanto, não foi suficiente para estabelecer um diálogo, apesar de algumas iniciativas em áreas como enfermagem e saúde coletiva. Tem sido um grande desafio implantar a disciplina de história da Medicina, porque os médicos e outros profissionais da saúde nem sempre reconhecem a importância da reflexão histórica sobre a prática médica.

O simpósio discutiu a possível mudança da denominação “História da Ciência e da Tecnologia” para “História do Conhecimento”. Por que essa mudança é necessária e que implicações traria?
É importante compreender que existe um descontentamento antigo da comunidade científica com a chamada “tabela das áreas do conhecimento”, ou seja, a maneira com que o conhecimento é dividido e classificado. Evidentemente, toda tentativa de conformar as áreas do conhecimento em "escaninhos” pode trazer descontentamento, devido à tendência da superespecialização do conhecimento. Há uma grande insatisfação, principalmente das áreas emergentes, em relação à maneira pela qual os cientistas têm sido avaliados por seus pares. Normalmente, as pessoas se sentem mal reconhecidas. Entendem que seus trabalhos não são julgados por pares competentes, porque o conhecimento está fracionado. Os órgãos de fomento vêm se debruçando sobre uma nova tabela do conhecimento, embora haja um grupo que defenda a manutenção da atual subdivisão. Qualquer discussão deve garantir dois parâ­metros fundamentais: uma adequada classificação e identificação dos pesquisadores; e o mérito e a qualidade do trabalho.

Há quem diga – e até mesmo alguns médicos denunciam isso – que vivemos em uma ditadura da medicina, em que as práticas médicas caminhariam para a desumanização. É essa idéia que o senhor discute num de seus artigos, intitulado Médico de cabeceira?
Essa reflexão só pode ser bem compreendida a partir do ponto de vista histórico. Quando falamos de Medicina desumanizada, parte-se da idéia de que, em algum momento, ela foi mais humanizada, Ou seja, que havia mais atenção, acolhimento e uma relação mediada pelo diálogo e confiança. Tal idéia sugere que essa relação foi perdida, talvez por causa do grande avanço da tecnologia. Entretanto, a imagem de que a Medicina foi mais humanizada no passado é um tanto quanto idealizada. Até porque a prática médica foi muito diferenciada ao longo da história da humanidade. Por volta dos séculos 18 e 19, por exemplo, a Medicina configurou-se mais como uma prática liberal. Naquela época, havia médicos com atitude profundamente autoritárias em relação aos seus pacientes. Na verdade, não havia esse diálogo.