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Nº 1651 - Ano 35
4.5.2009


“O autor de abuso sexual é um
indivíduo acima de qualquer suspeita”

Ana Maria Vieira

Filipe Chaves
Lippi: correlação entre violência sexual e tentativas de suicídio

No início da década, ao desenvolver sua tese de doutorado, o médico psiquiatra José Raimundo Lippi deparou com uma realidade surpreendente: de 322 pessoas que haviam tentado suicídio, em registros de pronto-socorro no período de seis meses, 33% tinham sofrido abuso sexual. Não se tratava de coincidência. “Com esses dados, demonstrei haver correlação entre tentativas de suicídio e violência física, psicológica e sexual”, diz o especialista, uma das referências brasileiras no estudo do abuso sexual em famílias incestuosas.

Professor da Faculdade de Medicina, Lippi preside, desde 2005, a Associação Brasileira de Prevenção e Tratamento das Ofensas Sexuais. Um dos alertas de seus membros às autoridades do país é a necessidade de interlocução entre as áreas da Justiça e da Saúde para prevenir o problema. “Não basta punir, é preciso interromper o ciclo do incesto, adotando estratégias para tratamento dos ofensores sexuais”, alerta. O tema, que esteve na pauta do 2° Congresso Internacional sobre Ofensas Sexuais, sediado no final de abril na UFMG, foi abordado pelo professor nesta entrevista ao BOLETIM.

A realização do 2° Congresso é um indicativo de que apenas agora a sociedade científica começa a se debruçar mais sobre o tema?

Esse foi o primeiro evento internacional a tratar do tema incesto. Ele é tabu e, durante um longo período, suas ocorrências, que são milenares, vinham à tona de vez em quando. O que ocorreu no momento é que a história de incesto do austríaco Joseph Fritz, na mesma cidade onde Freud descreveu o abuso sexual real praticado pelos pais, tomou vulto na mídia mundial, por sua gravidade. Mas o nosso evento já estava em andamento.

O que significa o termo ofensas sexuais?

É um termo que foi cunhado por nós – um grupo de especialistas brasileiros – quando idealizamos a Associação Brasileira de Prevenção e Tratamento das Ofensas Sexuais (Abtos). Ele abrange todas as violências sexuais, como estupro e pedofilia. Embora seja um problema de saúde pública, ele fica guardado em segredo, dentro das famílias. O índice de abuso é muito grande.

O senhor tem esses números?

Defendi em 2003 tese de doutoramento na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Coletei dados no Hospital de Pronto-Socorro João XXIII, em Belo Horizonte, que me permitiram demonstrar a associação entre tentativas de suicídio e violência física, psicológica e sexual. Durante seis meses, registramos 322 casos de tentativas de suicídio, e um grupo-controle também com 322 pessoas que chegaram naquele hospital com as mesmas características. A incidência de abuso sexual foi muito elevada. Do grupo-controle – que entrou no Pronto-Socorro por outros motivos – 13% revelaram ter sido abusados na infância. Desse percentual, 80% haviam sofrido esse tipo de violência dentro da própria casa. O mais grave é que, dos que tentaram o suicídio, 33% foram abusados sexualmente.

O que estamos chamando de incesto é o relacionamento sexual entre pais e filhos?

Não. Consideramos o incesto toda relação de cunho erótico exercida não só pelos parentes consanguíneos, mas por aqueles que exercem um poder e colaboram de alguma forma no funcionamento de uma família. A ideia da consanguinidade fica mais restrita à Justiça e também a algumas manifestações da área médica.

O incesto se repete entre gerações da mesma família?

Sua característica é de passar de geração para geração. Se não se tratar, quem foi abusado corre um grande risco de se tornar um abusador. O mais grave efeito é a impossibilidade de uma criança abusada sexualmente chegar a ser um cidadão completo. Ela tem todas as dificuldades, do ponto de vista biológico, psicológico e sociológico. O incesto é um grave problema pela característica criminosa e pelos seus efeitos danosos na constituição da personalidade do ser abusado.

Poderia explicar melhor essas consequências?

Há pesquisas que comprovam que o cérebro das crianças abusadas sexualmente sofre alterações na sua forma e função. A principal consequência é o transtorno de estresse pós-traumático. Outras são tentativa de suicídio e psicoses. Nem todos os que sofreram abuso terão essas doenças. Mas um número considerável poderá sofrê-las caso não se trate adequadamente.

Como o ofensor lida com a própria consciência?

O abusador é um indivíduo acima de qualquer suspeita, que está em todas as classes econômicas e intelectuais. Existem abusadores já catalogados. Eles se enquadram, por exemplo, na classificação do CID 10, o transtorno de preferência sexual – o voyeurista, o exibicionista, o pedófilo, o homem incestuoso. Muitos deles sofrem porque desejam se controlar e não conseguem.

O abusador sabe que se ele se revelar pode sofrer punição. Isso interfere na possibilidade de buscar ajuda médica?

Há casos em que eles procuram. Eu mesmo já fui procurado e não atendi por uma série de razões. Mas essa é uma questão que tem implicações jurídicas e de sigilo profissional.

Vocês não precisam denunciar?

A lei obriga. Mas essas denúncias praticamente não existem. Muitos profissionais da área procurados por esses doentes lançam mão do sigilo profissional para aquele ser humano que está tentando se tratar. Mas a maioria dos abusadores não está preocupada em buscar ajuda, eles querem manter aquela situação, usando a força e a violência para impedir a delação.

O que deve ser feito para reduzir a reincidência do abuso sexual?

Dependendo da gravidade do seu transtorno, o abusador deve ser retirado da sociedade, pois corre risco pessoal e oferece risco para a comunidade. Desde que ele seja recolhido, vai se tratar. Diferentes estratégias de tratamento – ambulatorial, internação, medicamentoso, cognitivo-comportamental – poderão interromper o ciclo.