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Nº 1745 - Ano 37
22.8.2011

opiniao

O lugar da UTOPIA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Tem sabor de utopia o poema Arco-íris, escrito por um dos grandes representantes da literatura afro-brasileira, o paulista Carlos de Assumpção: “nós somos Dons Quixotes/ Em cavalos de sonho vamos/Por toda parte da cidade/ Semeando palavras como sementes/ Dividindo o pão do bem mostrando caminhos/ Levando esperanças a quem não tem/ Nós somos Dons Quixotes não importa/ De sonhadores o mundo tem precisão/ A vida será céu quando todos os homens/ Trouxerem as estrelas aqui pro chão”. Esse achado literário, presente no livro Quilombo (2000), lança luz sobre o precioso tema das utopias. Falar de utopias é falar da história do homem como possibilidade. É falar das relações que se depreendem do desajuste entre sociedade real e idealizada. É pôr em xeque um conceito construído de verdade: o mundo que não corresponde ao mundo que deveria ser.

Um traço que deve caracterizar o ser humano, ainda não embrutecido pela própria fraqueza ou pela realidade tremenda, é a liberdade que ele se reserva de opor ao evento defeituoso, à situação decepcionante, uma força contraditória. Essa força se chama utopia, expressa pelo desejo de transformação positiva da realidade desde seus fundamentos. Trata-se de um sentimento de esperança; esperança de que aquilo que não é, não existe, pode vir a ser, uma espera no sonho, de algo que se mova para frente, para o futuro, tornando realidade aquilo que precisa acontecer, aquilo que tem que passar a existir.

É oportuno, nesse contexto, o novo sentido conferido por Paulo Freire à palavra esperança. O grande educador dizia que era preciso ter esperança, mas esperança do verbo esperançar, e não do verbo esperar. Porque a esperança que vem de “esperar” é pura espera, desejo sem poder, ao passo que, quando proveniente de esperançar, significaria se unir e ir atrás, não desistir, considerando, assim, o nosso potencial de agentes promotores de mudanças, em resistência à força mantenedora do status quo.

Só aqueles que veem o invisível podem realizar o impossível. Nessa toada transformadora, podemos intensamente experimentar o ativismo existencial proclamado por Mário Quintana, em Das utopias (1951): “se as coisas são inatingíveis...ora!/ Não é motivo para não querê-las.../ Que tristes os caminhos, se não fora/ A mágica presença das estrelas”. Buscar o horizonte resplandecente é o que motiva e justifica a nossa caminhada. É bem verdade que o termo utopia adquiriu ao longo do tempo um sentido pejorativo a designar sempre alguma coisa irrealizável ou fantasiosa. Trata-se da “utopia regressiva”, segundo Luigi Ferrajoli, em Direito e razão: teoria do garantismo penal (2006), ou “utopia escapista”, de acordo com Jerzi Szachi, no seu livro As utopias (1972).

Em compensação, os mencionados autores, respectivamente, ressaltam a existência da “utopia progressiva” e da “utopia heroica”. Nessas últimas tipologias, portanto, repousam os poemas citados de Carlos de Assumpção e Mário Quintana. Esses autores salientam que não há dinamismo social sem uma visão utópica. Não há mudança, não há caminho sem que o horizonte seja utópico. Entendemos como o lugar da utopia a crítica da extensão do hiato que nos separa, individual e coletivamente, da melhor vida ao nosso alcance.

Ser utópico não é fugir da realidade, mas ao contrário, é um modo de criticar sistematicamente a situação concreta e atual em função de critérios éticos e de reivindicações fundamentais. Dentro desse contexto, é bastante oportuno o alerta feito pelo amigo e poeta Nov@to: “uma coisa é ‘subviver’, outra coisa é sobreviver”. Motivada pela transformação utópica, a denúncia da estrutura desumana (subvivência) se mostra como princípio da tomada de consciência fundamental para o anúncio da estrutura humanizadora (sobrevivência), a ser viabilizada pelo empenho coletivo.

Por meio da utopia, pretendemos colher bons frutos e desfrutá-los com qualidade de vida. Tal ambição não representa apenas o sonho de dias melhores, mas se revela como um fator efetivo de transformação social. Muito mais do que um imperativo moral, a utopia encontra sustento na prática da perspectiva ética, compreendida habilidosamente pelo filósofo Paul Ricouer como sendo “a perspectiva de uma vida boa, para e com outrem, em instituições justas”. Tal noção exemplarmente confere viço ao que devemos entender por utopia.
Gonzaguinha, em sua canção É (1988), canta, de maneira ímpar, os ideais da prosperidade coletiva almejada utopicamente: “a gente quer valer o nosso amor/ a gente quer valer nosso suor/ a gente quer valer o nosso humor/ a gente quer do bom e do melhor/ a gente quer carinho e atenção/ a gente quer calor no coração/ a gente quer suar, mas de prazer/ a gente quer é ter muita saúde/ a gente quer viver a liberdade/ a gente quer viver felicidade/(...)/ a gente quer viver pleno direito/ a gente quer viver todo respeito/ a gente quer viver uma nação/ a gente quer é ser um cidadão”.
Por trazer à tona essa plataforma de direitos fundamentais que zelam pela excelência da condição humana, a utopia ameaça a zona de conforto dos poderosos e acomodados de plantão. O enquadramento da utopia, como “utopiada” ou mera ilusão, e do utópico, como sujeito distante da realidade, nefelibata e alucinado revela, no fundo, uma tendência explícita da ideologia dominante na sociedade de naturalizar a realidade existente como sendo a única possível e deslegitimar processos sociais com potencial de transformação. Convém, então, ressaltar que a utopia, diferentemente de se configurar como o hábito de comer com os olhos, se apresenta ousadamente como a fome de ver com as mãos.

* Jornalista formado pelo Centro Universitário de Brasília. Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG. Graduando em Letras (Português e Inglês) pela Faculdade Pitágoras

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