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Nº 1795 - Ano 39
22.10.2012

opiniao

A democracia “Tiririca”*

Marcelo Sevaybricker Moreira**

No contexto do Segundo Reinado, o político mineiro Teófilo Otoni, admirador confesso do parlamentarismo inglês e do regime norte-americano, bradava aos seus pares pela criação de uma república no Brasil.

Defensor dos “princípios democráticos” e contrário ao poder pessoal e arbitrário de D. Pedro II, Otoni, todavia, pensava em uma democracia bem específica. Como ele esclarece, é a “democracia pacífica, a democracia da classe média, a democracia da gravata lavada, a democracia que com mesmo asco repele o despotismo das turbas e a tirania de um só”.

O que diria hoje esse distinto senador da democracia brasileira, na qual um palhaço não apenas é eleito deputado federal como é escolhido um dos 15 melhores da Câmara dos Deputados? Não é brincadeira: 186 jornalistas ligados ao Congresso em Foco, site especializado no Poder Legislativo, já indicaram Francisco Everardo de Oliveira Silva, o Tiririca, para o prêmio, e ele pode vir a se tornar, dependendo agora da votação dos internautas (o resultado final sai no dia 9 de novembro), o melhor deputado do Brasil no ano de 2012.

Certamente Otoni, bem como muitos dos democratas do passado (e mesmo do presente), ficariam de cabelo em pé ao ouvir a notícia, sobretudo se lembramos de alguns bordões de campanha de nosso palhaço-deputado: “Sou candidato a deputado federal. E o que faz um deputado federal? Na realidade, eu não sei, mas vote em mim que eu te conto”. Ou ainda: “Pra deputado federal, Tiririca. Vote no abestado”. E o inesquecível: “Vote no Tiririca, pior que tá não fica”.

Tiririca, deputado federal mais sufragado na eleição passada (tendo recebido 1.353.820 votos em São Paulo) está ­surpreendendo quem acreditava que seu mandato seria uma tragédia. Há poucos dias, por exemplo, teve sua primeira proposta aprovada em uma das comissões da Câmara, a que garante que artistas circenses (normalmente sem residência fixa) tenham direito também à seguridade social. Além disso, ele é um dos nove deputados, no universo de 513, que compareceram a todas as 171 sessões de votação durante pouco mais de um ano e meio de mandato, estando presente também em 88% das reuniões na Comissão de Educação e Cultura, na qual é membro titular.

Ironia do destino? Logo ele, que depois de conquistar semelhante vitória nas urnas, teve que comprovar que não é analfabeto, copiando um parágrafo ditado de um livro qualquer de direito e lendo duas notícias de jornal para um juiz de um Tribunal Eleitoral de São Paulo.

Pois, por aqui, quem “não sabe ler e escrever” pode votar, mas não pode ser votado. A distinção entre “eleitor” e “elegível”, frequentemente ignorada, é, entretanto, fundamental para compreender a dinâmica de expansão das democracias no mundo. Em geral, os direitos políticos foram inicialmente criados para poucos, especialmente o direito de ser votado. Em função de pressões de diversos grupos sociais, as barreiras para a participação política foram gradualmente abolidas. Era preciso, como se diz por aí, “dar o anel para não perder o dedo”.

Ora, o que o mineiro Teófilo Otoni exigia no final do século 19 era precisamente que essas barreiras fossem mantidas; que a democracia fosse constituída não por “tiriricas”, mas por pessoas “qualificadas”, sobretudo, letradas. Se aproveito para brincar com o termo “tiririca”, é precisamente porque um de seus significados no vernáculo nacional é o de “erva daninha que invade os campos cultivados”, como o nosso palhaço que resolveu sair do picadeiro e ocupar o espaço reservado aos “donos do poder”.

Mas cumpre perguntar: será o letramento uma condição necessária para a ação virtuosa e eficiente na política? Ou isso expressa apenas o temor elitista, a demofobia, de que os resultados dos pleitos democráticos contrariem os privilégios vigentes? Não é o mesmo sentimento que irrompeu a cena pública quando um operário se fez presidente? Como dizia Aristóteles, para participar da política não é necessário um conhecimento “técnico”, contando muito mais a experiência prática. Por isso, a participação de todos os cidadãos torna-se importante, visto que ela traz à cena pública razões e demandas antes ignoradas, sendo todos eles, a princípio, capazes de avaliar se as políticas aplicadas são boas ou não. Do mesmo modo como quem sabe realmente se um sapato calça bem é o próprio usuário, e não o sapateiro.

Mesmo a nossa “Constituição Cidadã”, a de 1988, inequivocamente caracterizada pelos avanços na expansão dos direitos democráticos, dispensou a exigência da alfabetização para os eleitores, mas não para os elegíveis. Outras nações do globo, como a vizinha Argentina, consentem em ter um representante político analfabeto. Não seria hora de repensarmos esse critério?

Sem, todavia, superestimar a figura do “Tiririca”, importa destacar que, como bem disse o cientista político brasileiro Wanderley Guilherme dos Santos, “a democracia assusta aqueles que sempre foram democratas quando a democracia não existia”. Com o aumento da competição política e a incorporação de setores até então excluídos da polis, os pleitos eleitorais tendem a ser crescentemente imprevisíveis. Se até 1980 nossas eleições não contavam com mais de 40% de participação da população brasileira adulta, atualmente, contra as resistências oligárquicas ainda presentes, percebe-se que ela, tanto na dimensão dos que podem votar quanto dos que podem ocupar um cargo eletivo, está deixando de ser uma “democracia de gravata lavada” para se tornar, felizmente, uma democracia cada vez mais popular.

* Publicado na edição 105, de 8 de outubro, da Revista Teoria e Debate, editada pela Fundação Perseu Abramo
** Doutorando em Ciência Política na UFMG e professor de filosofia do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet-MG), campus Contagem