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Nº 1843 - Ano 40
04.11.2013

opiniao

A ilusão do progresso e a condenação dos lugares à inexistência

Vagner Luciano de Andrade*

Na contemporaneidade existe uma ideia deturpada de progresso materializado sob o formato de grandes empreendimentos: barragens, minerações e/ou urbanizações. Muitas são as áreas alagadas ou mineradas em decorrência das ações e intenções do modelo socioeconômico. Neste contexto, insere-se o termo “topocídio”, proposto pelo geógrafo Yi-Fu Tuan, que significa morte, extinção ou assassinato do lugar. Quando um determinado lugar é condenado eternamente ao plano da inexistência, seja extinto de modo brusco, como no caso de barragens, seja por meio de lentos processos de estagnação econômica, fragmentos relevantes da história local se perdem. Exemplos brasileiros antigos e recentes de topocídio não faltam: as antigas Guapé, Itueta e Nova Ponte, em Minas Gerais; Ouro Fino, em Goiás; Casa Nova, Pilão Arcado, Remanso e Sento Sé, no Nordeste, além de parques nacionais como Paulo Afonso e Sete Quedas.

Um bom exemplo de topocídio brasileiro é o Curral del Rey. O antigo arraial surgiu seguindo o traçado dos primeiros caminhos, como a maioria das cidades mineiras do período colonial. Era uma freguesia subordinada à Comarca de Sabará, condenada à extinção em 1893, para implantação da nova capital planejada do estado, batizada inicialmente como Cidade de Minas (depois, Belo Horizonte), construída em substituição a Ouro Preto.

Existem duas versões que explicam o início do povoamento na região: a primeira delas, defendida por Augusto de Lima Junior, conta que, em 1709, o capitão Francisco Homem del-Rei abandonou a nau Nossa Senhora da Boa Viagem, no Rio de Janeiro, e dirigiu-se à região das Minas, onde requereu em 1716 permissão de celebração em uma capela nas redondezas de sua moradia. Quando a resposta positiva chegou, ao redor dessa capela já se encontravam diversas moradias que marcavam o início do arraial do Curral del Rey.

No entanto, Abílio Barreto, no livro Belo Horizonte: Memória histórica e descritiva, afirma que o responsável pela fundação do arraial foi João Leite da Silva Ortiz, que em 1701 estabeleceu a Fazenda do Cercado, onde hoje se localiza o bairro Calafate. Ele afirma que, logo depois de fundada a fazenda, “foi surgindo o povoado, ao qual os habitantes deram o nome de arraial do Curral del Rei, por causa do cercado ou curral ali existente (...)”. Esta é a versão mais aceita e difundida. A partir daí verifica-se a ocupação de toda a região, com diversas fazendas destinadas a criação e venda de gado e agricultura, além da fabricação de farinha. Em 1823, a pequena capela de Nossa Senhora da Boa Viagem, erguida nos tempos da colonização, já não comportava mais a população de 1.339 habitantes do núcleo urbano. Ela foi então substituída por uma edificação maior, com a mesma invocação, cuja construção durou de 1788 a 1792.

Devido à sua essência agrosilvipastoril, o Curral del Rey não foi prejudicado com a decadência das minas no final do século 19, como outros arraiais do mesmo período. Existem apenas alguns registros de exploração de ouro na região do Mutuca e na Serra do Taquaril, esta citada por Richard Burton em 1865. Porém, o arraial, como outras regiões do estado, passou por processo de estagnação durante o século 19. Com a proclamação da República em 1889, e depois de realizadas várias reuniões, os habitantes adotaram o nome de Belo Horizonte, com o aval do então governador João Pinheiro da Silva. Uma das cinco localidades (as outras foram Barbacena, Juiz de Fora, Paraúna e Várzea do Marçal) apontadas para a realização dos estudos visando à construção da nova capital, o arraial de Belo Horizonte, antigo Curral del Rey, foi escolhido em dezembro de 1893 a futura sede da capital de Minas Gerais, o que o condenou à imediata destruição.

Assim como o novo nome, que ensejava os ideais contemporâneos da jovem nação republicana, a população local comemorou o grande feito. Mal sabia que a ilusão do progresso seria a condenação do lugar à inexistência. A capital foi construída entre 1893 e 1897, e os moradores foram expulsos para as adjacências, como o antigo povoado de Santo Antônio de Venda Nova, hoje um dos distritos da capital mineira. Há relatos de reassentamentos dos autóctones no Barreiro, Contagem das Abóboras, Marzagão e Pampulha. O sonho republicano de morar numa capital moderna e arrojada foi substituído pela decepção e pela exclusão, uma vez que a nova cidade abrigaria apenas funcionários estaduais e suas famílias. Com o tempo a cidade saiu dos padrões burocráticos e estatais para os quais foi concebida. Surgiram as primeiras favelas, e as colônias agrícolas adjacentes à Avenida 17 de Dezembro, hoje do Contorno, foram dando lugar a inúmeros parcelamentos. Hoje a capital mineira é a sexta maior cidade do país.

Com este exemplo consolidado na história nota-se que o topocídio não é sinônimo apenas de extinção – de um lugar, de um povo, de uma cultura – mas uma das muitas materializações do conflito urbano-industrial capitalista que insiste em seu paradigma insustentável, excludente e dominador. É preciso romper com quaisquer perspectivas ilusórias do “progresso” que legitimam, consolidam e condenam lugares e pessoas ao vazio da “inexistência”.

*Ex-aluno da Faculdade de Educação da UFMG e mestrando em Direção e Consultoria Turística (concentração em turismo sustentável) na Universidad Europea Miguel de Cervantes, na Espanha