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Nº 1861 - Ano 40
28.04.2014


As décadas do corpo

Pesquisador argentino analisa, em livro da Editora UFMG, usos e figurações do corpo na arte brasileira

Itamar Rigueira Jr.

Particularmente interessado no período compreendido entre as décadas de 1960 e 1970, que considera fascinantes – não só no Brasil, mas em toda a América Latina – , o professor de literatura brasileira e portuguesa Mario Cámara, da Universidade de Buenos Aires, percebeu em suas pesquisas que os anos 60 deixaram de lado escritores bem interessantes, como Roberto Piva e Jorge Mautner.

Essa descoberta o fez procurar uma ligação entre as duas décadas. “Penso que esse elo foi o ‘corpo’. Na literatura, e também nas artes plásticas brasileiras, esses anos são de muito ‘corpo’”, afirma Cámara, que traduziu para o espanhol obras de Clarice Lispector, Paulo Leminski e Glauco Mattoso.

Mario Cámara é autor de Corpos pagãos, livro recém-lançado pela Editora UFMG, em que reflete sobre as práticas que definem o corpo e as consequências políticas contemporâneas dessas práticas. Em texto para a orelha do volume, a professora Luciana di Leone, da Universidade Federal de Santa Catarina, comenta que Cámara se interroga de que modo os corpos se inscreveram na história recente do Brasil e como “as práticas corporais que a arte e a cultura encenaram naquele momento insistiram em se mostrar como libertárias, resistentes e críticas frente a uma lógica de censura racional e desenvolvimentista”.

Para desenvolver sua análise, Mario Cámara conta que partiu não de uma ideia preconcebida do corpo, nem do corpo como cárcere ou espaço de liberdade, mas como matéria cultural que pode mudar em diversos momentos históricos. “Gosto de pensar o corpo como espaço a partir do qual olhar a história. Tentei não uma catalogação de corpos, mas pensar neles como espaço que parecia servir para resistência, estética ou política.”

O momento histórico, segundo o autor, suscitou o aparecimento de figurações caracterizadas pelo sensorial e pelo sensual. Ele lembra que os anos 1960 e 70 foram, em todo o Ocidente, as décadas do corpo, na forma das drogas, da música pop e da liberação sexual. “No caso do Brasil, há uma tradição de cultura popular muito ligada ao corpo, e a praia e o carnaval são dois exemplos. Contudo, meu alvo foi pesquisar o que havia por trás de uma tradição importante como a dos poetas concretos, e foi com eles que eu encontrei o corpo”, afirma Mario Cámara.

‘Visão infernal’

Em seu texto de apresentação, o professor argentino explica que examina o conjunto de figurações corporais e seu uso nos diversos momentos por meio da abordagem de materiais como o Manifesto Neoconcreto e ensaios sobre obras como os Bichos, de Lygia Clark, os Parangolés, de Hélio Oiticica, e o periódico satírico Dobrabil, de Glauco Mattoso. Este artista, de acordo com Cámara, faz uma releitura da tradição modernista brasileira, apropriando-se da ideia de “antropofagia”, de Oswald de Andrade. “É uma visão um pouco infernal, mais próxima do Gregório de Mattos: um Brasil caído, corrompido.”

Para Cámara, figurações emergentes nos anos 70 e 80 se relacionam com tempos anteriores e foram utilizadas em contexto do que chama de “modernização autoritária”. Ele ressalta que diversas representações do corpo foram criadas e usadas na década de 70, os anos de chumbo no Brasil, e que essas criações sempre procuraram um corpo transgressor. “Eu proponho que essas figuras dos anos 70 encontram alguns modelos na década anterior, uma certa inspiração. Por outro lado, penso também que esses corpos dos 70 permitem ler algumas produções dos anos 60 ditas ‘racionalistas’ de modo diverso”, revela o autor, que destrincha a produção de nomes como Torquato Neto, Haroldo de Campos e Waly Salomão.

No capítulo final de Corpos pagãos, o pesquisador argentino concentra sua abordagem no poeta Paulo Leminski, com o qual começou seus estudos. Cámara considera o escritor importante por sua relação tensa e polêmica com os poetas concretos. “O Leminski nasceu ‘concreto’, como ele dizia, mas com o tempo iniciou um deslocamento interessante, em que a questão do corpo, na figura da paixão, ocupou lugar central”, comenta Mario Cámara.

Livro: Corpos pagãos – Usos e figurações na cultura brasileira (1960-1980)
De Mario Cámara
Editora UFMG
231 páginas / R$ 48 (preço de capa)