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Nº 1974 - Ano 43
24.04.2017

O vasto mundo de Raimundo

Presépio do Pipiripau será reinaugurado nesta semana após restauração de peças e reforma de sua estrutura

Matheus Espíndola

A mistura da narrativa da vida de Cristo com a reprodução de aspectos do cotidiano mineiro do início do século 20, que tanto encantou gerações de crianças e adultos, está de volta. Com suas 45 cenas, 586 personagens e cerca de três mil objetos, o Presépio do Pipiripau, instalado no Museu de História Natural e Jardim Botânico (MHNJB), será reinaugurado nesta semana depois de minucioso processo de restauração.

A revitalização do Pipiripau, que passou a contar, entre outras melhorias, com patamares de madeira livres de infestação de insetos, estrutura elétrica mais segura e materiais com tecnologia de ponta, foi coordenada pelo Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais (Cecor) da Escola de Belas Artes, com participação de cerca de 30 bolsistas do curso de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis da UFMG. A reforma também aglutinou o esforço voluntário de professores e estudantes da Escola de Engenharia, além de outros profissionais e empresas.

Segundo o reitor Jaime Ramírez, o presépio é um dos maiores patrimônios da cultura mineira, a obra da vida de um grande artista popular [o artesão Raimundo Machado Azeredo]. "As cenas e personagens que ele construiu aliam a religiosidade do nosso povo, a simplicidade de seu cotidiano e o deslumbre com os engenhos. À medida que ia mantendo contato com as tecnologias, que rapidamente se sobrepunham no século 20, foi incorporando-as à instalação, sempre com objetivo de possibilitar uma nova representação. Para a UFMG, é um orgulho devolvê-lo restaurado à cidade de Belo Horizonte", afirma o reitor.

"O presépio está funcionando maravilhosamente. É uma obra ímpar por sua delicadeza, inocência e capacidade de nos transformar", ressalta o professor da Escola de Belas Artes Fabrício Fernandino, coordenador geral do projeto de restauração. "A reabertura do Presépio do Pipiripau ao público, após cuidadosa restauração, é motivo de imensa satisfação e confirma o compromisso assumido pelo MHNJB com a preservação da memória do seu autor, com a do próprio presépio e com a da cidade de Belo Horizonte, que, assim como o museu, tem esse acervo incorporado à sua história", afirma o diretor, Antônio Gilberto Costa.

O projeto de restauração e modernização da obra foi aprovado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), com financiamento regulado pela Lei Rouanet. A captação, iniciada em 2005, foi firmada com o Instituto Unimed, em dezembro de 2011, no valor de R$ 565 mil. Em janeiro do ano seguinte, o presépio foi fechado para execução do diagnóstico para reparo. A partir daí, foram elaborados os projetos complementares, como instalações elétricas, hidráulicas e de prevenção a incêndio, segurança eletrônica, sonorização, sinalização de emergência, entre outros. A restauração começou em 2014 e foi finalizada no último mês de fevereiro.

O diretor-presidente da Unimed-BH, Samuel Flam, também comemora a conclusão dos trabalhos de restauração. "Estamos muito felizes com o resultado e, principalmente, em poder contribuir para essa entrega tão simbólica para os mineiros", afirma o presidente, informando que os recursos direcionados para a revitalização do presépio foram captados entre cooperados e colaboradores do Programa Cultural Unimed-BH.

Cabelo de milho, musgo e folhas

O Pipiripau começou a ser construído em 1906, quando Raimundo Machado Azeredo, que tinha apenas 12 anos, acomodou uma pequena imagem do Menino Jesus em uma caixa de papelão e compôs sua manjedoura com cabelo de milho, musgo e folhas. Ao longo das décadas seguintes, o presépio ganhou personagens e adereços feitos de materiais do cotidiano, como barro, papel machê, gesso, tubo de pasta de dente, tampa de perfume, conchas, cacos de vidro e outros.

"Tudo foi construído por acumulação, não houve projeto prévio. A genialidade do artista é demonstrada em todo o presépio", conta a professora Bethania Veloso, diretora do Cecor. Com o passar dos anos, Seu Raimundo agregou outros autores à obra, como a esposa, Ermenegilda, e os filhos.

"Muitas das peças estavam desgastadas pelo uso e pelo tempo", comenta a restauradora Thaís Carvalho, responsável pela coordenação dos trabalhos. Graduada em Artes Visuais e em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis pela Escola de Belas Artes, ela conta que, em alguns casos, materiais originais da instalação tiveram de ser substituídos. "A vegetação natural era úmida, continha terra e trazia para o presépio insetos e cupins de solo. Além disso, tinha de ser molhada periodicamente, o que favorecia o surgimento de fungos e a oxidação das bases metálicas", descreve a restauradora. Essa etapa demandou a aquisição de vegetação cenográfica artificial, muito semelhante ao musgo empregado pelo criador do presépio.

Tati Motta
A restauradora Thaís Carvalho em ação: fotos e filmagens ajudaram a remontar a cenografia
A restauradora Thaís Carvalho em ação: fotos e filmagens ajudaram a remontar a cenografia

Ainda segundo Thaís, foi preciso costurar toda a nova vegetação em uma tela, posteriormente amarrada nas bases do presépio. A técnica, além de facilitar substituições futuras, dispensa o uso de cola, que "com o passar do tempo, torna-se ácida, amarelece e provoca deterioração".

Bethania Veloso revela que as lâmpadas incandescentes, que aquecem e podem queimar o papelão e a madeira do presépio, foram trocadas por similares de LED, que não geram calor. A estrutura metálica do presépio, por sua vez, passou por procedimento semelhante à lanternagem de automóveis, com laminação e remoção da ferrugem.

"Todos os processos foram executados com extrema qualidade: desde o diagnóstico inicial, incluindo o registro fotográfico das cenas, a identificação química dos materiais e a higienização. Tintas, vernizes, tecidos e resinas empregados também são de primeira linha", completa Bethania. O tratamento dos tecidos das roupas foi realizado nos próprios bonecos. "Se desmontasse, perderia o registro da costura, toda feita por Dona Ermenegilda", justifica a diretora.

O mesmo brilho, as mesmas cores

"O Pipiripau estava em um estágio de precariedade total, com sérios comprometimentos estruturais e grande risco de incendiar", relata Bethania, sobre a urgente demanda pela restauração. "Todas as madeiras estavam completamente atacadas por cupins. No diagnóstico inicial, nossa equipe teve enorme dificuldade de alcançar o patamar mais alto, pois era grande o risco de que tudo viesse a cair", acrescenta a professora. As madeiras foram trocadas, e professores e alunos da Escola de Engenharia da UFMG repararam as redes elétrica e hidráulica.

A equipe do Cecor realizou várias análises químicas e radiografias das peças e estruturas, a fim de compreender as técnicas originais e manter a autenticidade da obra. "Cumprimos o desafio de trocar uma fiação de mais de 100 anos, sem alterar a concepção do autor, e ainda conservar a estética, manter as cores e o brilho do presépio", garante Bethania.

Registros fotográficos e pequenas filmagens prévias foram fundamentais na remontagem da cenografia. "Dessa forma, foi possível mapear a posição de todas as peças e, após seu tratamento, recolocá-las no lugar exato", acrescenta Thaís Carvalho. Ela relata que cada peça foi catalogada com "uma ficha, como se fosse um prontuário médico, em que foram diagnosticadas todas as patologias e danos". Muitos dos bonequinhos de plástico, por exemplo, estavam "frágeis como casca de ovo", compara o professor Fabrício Fernandino. Segundo ele, os bonecos foram reproduzidos com o uso de resina de poliéster – material que, além de mais resistente, dificulta a propagação das chamas.

À medida que removiam camadas de areia e papel, "os restauradores descobriam algumas coisas maravilhosas e também problemas gravíssimos", conta Fabrício Fernandino. "Seu Raimundo usou conchinhas com um milímetro de diâmetro para confeccionar os olhos dos flamingos, detalhe só percebido por um olhar acurado após limpeza profunda da peça", exemplifica. "Havia também fios encapados com tecidos, algo impensável na indústria de hoje, e a graxa impregnada nos eixos estava ressecada, gerando atrito e desgaste", acrescenta Thaís. Minúcias como o rótulo de uma lata de cera inglesa e vitrais internos de uma pequena igreja foram descobertos e preservados. "Muitos desses pormenores nem são visíveis ao público; só foram constatados graças ao trabalho de recuperação", observa Thaís Carvalho.