Acolhida

Humano, demasiado humano

MARIANA GARCIA E TAÍS AHOUAGI

Discussão sobre humanização no atendimento ganha espaço entre os hospitais e gestores de saúde

Parada cardiovascular. Na sala de atendimento emergencial, cerca de 20 pessoas, entre médicos, enfermeiros e estudantes, tentam evitar a morte de uma paciente. Em frente, na sala de tratamento semi-intensivo, um dos pacientes que vinham do atendimento emergencial recebe os cuidados ao mesmo tempo em que o leito ao lado é higienizado e outro paciente tem seu soro trocado. Entre as duas salas, nos corredores, uma situação recorrente no cenário hospitalar: muitas macas, pessoas sendo atendidas ali mesmo, médicos e enfermeiros transitando. Essas cenas foram presenciadas pela reportagem em visita ao Hospital Universitário Risoleta Tolentino Neves da UFMG, em Venda Nova. É nesse ambiente extremo que a necessidade de políticas de humanização se torna mais evidente. Afinal, parodiando Charles Chaplin, são pessoas e não máquinas que cuidam ou recebem cuidados.

Segundo o coordenador da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde, Dário Frederico Pasche, a concepção de saúde atrelada a essa abordagem é inseparável da produção subjetiva. “Ela resulta de uma série de condições sociais, culturais, econômicas e outras que interagem e se atualizam. É um bem produzido na experiência social”, define. Para o coordenador, a saúde depende da capacidade da sociedade de produzir justiça social, pois quanto melhor a qualidade de vida, melhores serão os indicadores nessa área.

De acordo com a Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão no Sistema Único de Saúde, mais conhecida como HumanizaSUS, a humanização é uma orientação ética e política para nortear o enfrentamento dos problemas do Sistema Único de Saúde (SUS).

De programa a política

Antes de ser uma política, a humanização existia como programa do governo federal, cujo piloto foi apresentado em maio de 2000 e batizado como Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar. “O programa se transformou em política. Enquanto o primeiro tem início e fim, esta possui caráter estruturante”, afirma a enfermeira do Hospital das Clínicas (HC) da UFMG Maria do Rosário Santos, especialista em gestão hospitalar e saúde do trabalho. Segundo ela, um dos grandes desafios da política diz respeito ao seu caráter abrangente, que vai da organização do serviço, passando pelas relações, até o atendimento ao usuário. “Ela também deixa de ser atribuição só de hospital e passa a ser de toda a rede envolvida na atenção. Isso traz outra característica, que é de gestão”, diz a coordenadora do Programa de Humanização do HC, Patrícia Chaves.

Ao mesmo tempo em que a discussão sobre a humanização ganhava força no Ministério da Saúde, ela começava a aparecer no Hospital das Clínicas suscitada por um grupo de funcionários. Eles resolveram, de forma espontânea, fazer uma reunião para tratar do tema. Pregaram avisos pelos corredores convidando quem quisesse participar, mas não alimentavam muitas expectativas. O número de presentes surpreendeu. Resultado: a diretoria criou uma comissão responsável por planejar as ações de humanização dentro do HC.

O HC foi o primeiro hospital universitário de Minas Gerais a aderir ao Programa de Humanização. Hoje, a instituição conta com 53 projetos e trabalha para expandir e consolidar as ações nessa área. Um grande desafio ainda é a gestão. “Você pode tentar melhorar para o trabalhador e para o usuário, mas precisa estar amarrado entre os diferentes níveis – Ministério da Saúde, estado, município, unidades e em cada setor”, defende Patrícia Chaves.

Essa abrangência talvez explique a dificuldade de ajustar o sistema a uma prática humanizada da saúde. Segundo a professora do Departamento de Medicina Preventiva e Social da UFMG Ada Ávila, a gestão constitui-se em um corpo de decisões tomadas por indivíduos que vão incidir sobre o trabalho dos outros. O problema, segundo ela, é que a gestão da saúde é uma cópia do modelo industrial, que separa a concepção da execução. “O que se avalia hoje são os números, as planilhas com a quantidade de vacinas, curativos, pacientes acolhidos, medicamentos dispensados. E não o esforço para responder às necessidades de cada um que chega ali”, afirma a professora. Ada Ávila ensina: “Humanizar não é formar as pessoas para que sejam sensíveis e passem a ser mais dedicadas ao trabalho. Isso depende das condições que a gestão oferece, como o tempo. É preciso ter tempo para o ser humano”.

Primeiros passos

O Hospital Universitário Risoleta Tolentino Neves (HURTN), antigo Pronto-Socorro de Venda Nova, passa por uma reestruturação que impacta diretamente a problemática da humanização. Esse processo foi desencadeado com a parceria, oficializada em 2005, entre a Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (Fundep), a UFMG e a Secretaria de Estado de Saúde. Assim como o HC, o Risoleta Neves mantém uma estrutura que segue as orientações da Política Nacional de Humanização.

Uma iniciativa recente do HURTN é a Unidade de Acidente Vascular Cerebral (AVC), criada há cinco meses pelo grupo de neurologia. “O AVC é a maior causa de morte no país. Até algum tempo atrás, sua vítima era relegada a segundo plano, porque se acreditava que não havia tratamento”, explica o neurologista da Unidade de AVC, Marco Túlio Tanure. Ali, o atendimento é feito por uma equipe multidisciplinar, que inclui médico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, enfermeiro e psicólogo. Essa equipe se reúne duas vezes por semana para discutir o quadro clínico de cada paciente. “Quando ele começa a fazer fisioterapia, a fonoaudióloga o acompanha, uma terapeuta ocupacional o ensina a pegar melhor no garfo, a criar independência. Se está com depressão, o paciente não vai responder bem ao tratamento. A psicóloga nos avisa e a gente oferece algum medicamento. Já a assistente social traz a família para perto”, conta o médico, detalhando os papéis de cada integrante do grupo.

O estudo caso a caso permite que o AVC seja tratado de acordo com as particularidades de suas causas, permitindo que a recuperação seja mais rápida e a prevenção, mais efetiva, reduzindo a reincidência. É um exemplo de como a humanização não se mede com planilhas. “Não adianta exibir números grandiosos: ‘eu atendo 2000 pacientes por mês’. É óbvio: o paciente volta toda hora”, critica Marco Túlio.

E agora?

Muitos hospitais focam seus esforços de humanização no bem-estar do paciente. No HC, por exemplo, o primeiro dispositivo da Política de Humanização trabalhado foi o “direito do usuário, visita ampliada e direito ao acompanhante”. Ele propõe a ampliação do horário de visitas, o acolhimento dos acompanhantes e a adequação da instituição para receber a rede social do usuário.

“A visita ampliada é, na verdade, uma avalanche dentro do hospital”, brinca a coordenadora do Programa de Humanização do HC, Patrícia Campos. Idosos, crianças, portadores de deficiência e parturientes têm direito ao acompanhamento. No entanto, nem sempre o hospital está preparado fisicamente para receber essas pessoas.

Só que a chegada da rede social do paciente não exige apenas que o espaço físico seja repensado. As relações entre os usuários e os profissionais da saúde também se transformam. Segundo Patrícia Chaves, as visitas e o acompanhante trazem um novo olhar, provocam questionamentos e explicitam suas dúvidas. É nesse contexto que se faz necessário refletir com os trabalhadores essa mudança que ela acredita ser paradigmática.

Mercione Etelvina Assunção, paciente do Hospital das Clínicas da UFMG, definiu como horríveis os dias que passou no Pronto Atendimento sem a presença de uma companhia. Isso, segundo ela, pesava negativamente em seu estado emocional e, conseqüentemente, na evolução do tratamento. A situação mudou quando Mercione saiu da sala do Pronto Atendimento e foi para um quarto, lugar em que a presença de acompanhantes é permitida e, em alguns casos, incentivada. Desde então, familiares e amigos se revezam para que ela tenha alguém por perto durante as 24 horas do dia. “O acompanhamento é muito importante para a felicidade dela”, resume Miriam Júlia Assunção, irmã de Mercione e uma de suas acompanhantes. Há pouco tempo, a paciente começou a fazer terapia no HC porque não conseguia lidar com a hemodiálise. Segundo ela, ter alguém da família a esperá-la no quarto faz um grande bem à sua recuperação.

Os acompanhantes chegaram. E agora, como eles serão acomodados? “Eu gostaria muito que o hospital tivesse mais conforto para os nossos acompanhantes. Muitas vezes nem cadeira tem”, afirma a coordenadora da Assessoria de Humanização do Hospital João XXIII, Milza Cintra. O papel da assessoria é promover essas condições, mas nem sempre é possível. No João XXIII, instituição estadual referência em quadros clínicos graves, as ações de humanização se alicerçam na valorização do trabalhador, no acompanhamento e na visita ampliada.

Milza Cintra também é supervisora técnica do Centro de Educação e Apoio para Hemoglobinopatias (Cehmob). O Centro, em par com o Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico (Nupad) da Faculdade de Medicina da UFMG, se dedica à educação, informação e apoio assistencial a pacientes com doença falciforme e ao treinamento de profissionais de saúde para aprenderem a lidar com a enfermidade. A doença é um distúrbio genético hereditário que modifica a forma das hemácias, causando isquemia, edemas, inchaços e muita dor.

A humanização promovida pelo Cehmob baseia-se no acolhimento e na informação. “Quando os próprios atendentes e os doentes não conhecem a doença, o sofrimento é muito maior. A partir do momento em que a gente adota essa forma de lidar com o problema, minimiza muito a dor da família e do paciente”, acredita Milza Cintra. O trabalho, portanto, não se resume ao diagnóstico e à medicação. Há o acompanhamento e, principalmente, o acolhimento do paciente e do familiar que está com ele: isso inclui desde buscar o paciente e a família na rodoviária até oferecer um tratamento diferenciado às gestantes com doença falciforme. Milza conta que a idéia é tentar fazer com que os pacientes se sintam em casa e percebam a atenção dispensada. “O segredo é não deixar a peteca cair. É dar informação para a família, recebendo, orientando, batalhando para que as coisas melhorem para os pacientes”, esclarece.

Humor, a melhor receita

O aspecto soturno dos hospitais brasileiros começa, aos poucos, a ceder lugar a uma atmosfera mais leve e lúdica, marcada por perucas, chapéus coloridos, narizes vermelhos e rostos maquiados. São os instrumentos clínicos de uma nova categoria de “doutores”, que se vale da alegria como recurso terapêutico para curar ou minorar o sofrimento alheio.

“No hospital, a gente abre mão da lógica do espetáculo, do teatro cheio, em troca de um olhar de uma criança que está na cama. E a gente doa, oferece o que tem de melhor. É a lógica do encontro”, diz Cícero Silva, o Dr. Titetê. “São vários encontros: com o profissional da saúde, com o familiar e com a criança, o nosso foco. Mas a gente se encontra com os outros e se relaciona com eles”, completa. Cícero é um dos seis palhaços da Unidade Pão de Queijo dos Doutores da Alegria.

Os Doutores da Alegria integram o “quadro médico” da Santa Casa de Misericórdia há dois anos. No HC, a trupe desembarcou em setembro de 2007. Segundo o Dr. Titetê, o “objetivo é levar a alegria para crianças, profissionais da saúde e familiares em hospitais através da linguagem do palhaço e do circo”. Para ele, a dificuldade maior é sustentar um olhar diferenciado sobre o ambiente do hospital diante dos quadros clínicos graves. “A realidade física não muda em nada, porque os corredores podem ou não continuar cheios de pessoas. O que a gente percebe é que, quando entra num quarto, instala-se uma energia e a gente consegue transformar esse ambiente”, relata. Se fosse médico de verdade, esse palhaço não receitaria nem bom humor. “Eu prefiro falar pura e simplesmente de humor, porque o humor é um outro modo de ver o mundo”, defende o Dr. Titetê.

Enquanto os doutores da alegria usam a veste de palhaço como complemento ao jaleco branco, a situação inversa também ocorre. Alguns alunos da Faculdade de Medicina da UFMG tinham como referência a trajetória do médico americano Patch Adams, famoso por usar o humor e o calor humano como remédio. Sua trajetória inspirou o filme Patch Adams – o amor é contagioso, com Robin Williams no papel principal. A pedido dos seus alunos, a socióloga e professora do Departamento de Medicina Preventiva e Social Rosa Nehmy fundou, em 2001, o projeto Abraçarte em parceria com o Hospital das Clínicas. A partir de então, o número de alunos interessados só aumentou. Vestidos de palhaços, os alunos visitam o hospital aos sábados, quando ele está mais vazio e as crianças, mais solitárias.

Rosa Nehmy diz que o hospital é um mundo à parte, com regras próprias e uma rotina que interessa à sua organização, não ao paciente. “O café da manhã é às cinco horas, o almoço às dez e meia”, ilustra ela. Essa rigidez, acredita, é muito pesada para os pequenos usuários. O remédio, então, é subverter tal rotina, pintando com outras cores o tradicional ambiente branco característico dos hospitais.

De si para o outro

Trabalhar em quatro, cinco, seis empregos diferentes. Ficar fora de casa por uma semana inteira, emendar plantões, substituir refeições por pizzas e sanduíches. Esses não são exatamente o que se pode chamar de hábitos saudáveis, mas são muito comuns entre aqueles que têm total consciência dos malefícios: os profissionais da saúde. “Não é fácil sensibilizar um médico. A gente só costuma conseguir quando ele já está no processo de adoecimento, o que é um fracasso da medicina do trabalho”, conta a médica do trabalho Ana Cândida, do Hospital Universitário Risoleta Tolentino Neves.

Hábitos desregrados não são exclusividade dos profissionais da saúde, mas, com eles, o problema fica mais evidente. “Quando você é ‘cuidador’ de alguém, tem que se colocar numa posição de sempre estar saudável, bem nas suas funções físicas e psíquicas”, explica Ana Cândida. Os horários de trabalho de cada emprego são planejados para que o funcionário descanse entre os dias de serviço. Porém, normalmente, o dia livre acaba ocupado com outros trabalhos. O enfermeiro Clésio Barbosa, chefe de emergência do Hospital Risoleta Neves, conta que, nesse meio, dificilmente tem-se apenas um emprego. “Alguns porque gostam muito de trabalhar, outros por precisão. E eu não posso falar que isso não interfere [no atendimento]. Há uma sobrecarga. Mas a gente começa a ter planos, acaba se envolvendo demais”, diz ele.

Com funcionários desgastados, fica mais difícil tratar bem os usuários do sistema de saúde. Por isso, a humanização não passa apenas pelo atendimento. Para ser eficiente, deve ser transversal. “Se eu não tenho condições do ponto de vista psico-emocional ou mesmo preparação profissional, o atendimento que vou dar não é o melhor. Por outro lado, não se pode culpar esse trabalhador pelo mau atendimento. O trabalhador bem cuidado, provavelmente, vai oferecer também um atendimento melhor”, acredita Maria do Rosário.

Milza Cintra tem opinião semelhante: “Humanização deve trabalhar até mais com o funcionário do que propriamente com o paciente; o nosso trabalhador é exigido demais nesse ambiente hostil”. Se a realidade dos hospitais é difícil de mudar, pelo menos o ambiente de trabalho pode ser suavizado. Milza conta que, no Hospital João XXIII, o trabalho de humanização diz respeito à melhoria dos relacionamentos por meio da valorização dos funcionários, da promoção de pequenos eventos e da melhoria dos instrumentos de comunicação interna.

A coordenadora do Grupo de Trabalho de Humanização do HC, Santuza de Senna Franco, aposta na horizontalização da carga horária dos profissionais para melhorar os resultados. Tanto para eles quanto para o paciente. Horizontalizar nada mais é do que estabelecer horários regulares de trabalho. Ela explica que não pode deixar de haver os plantonistas, porém, nos demais turnos, quem atende o paciente em um dia de manhã deve prioritariamente manter esse horário de trabalho ao longo da semana. Desse modo, cria-se uma linha de cuidado: existe um envolvimento entre quem cuida e quem precisa do atendimento. “O médico pode dizer que tem os seus pacientes”, argumenta.

Ajuda escutar?

Quem não quer ser ouvido? Talvez essa necessidade seja ainda maior no momento em que a pessoa se encontra fragilizada. Nessas horas, receber uma visita parece não ter preço. É o que fazem as irmãs da congregação Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo, o frei Sérgio Lobo e alguns voluntários da Pastoral da Saúde ao percorrer os quartos do Hospital das Clínicas. “O importante para nós é esse relacionamento amigo. É o paciente saber que pode contar conosco não só como religiosos, mas também como amigos”, afirma Frei Sérgio.

Entre 1928 e 2001, as irmãs moraram nas dependências do HC. A freqüência agora é menor, e o trabalho também mudou muito – no início, elas estavam em todos os setores da instituição. Mas a presença das irmãs e da Pastoral continua, segundo irmã Zélia, suavizando o ambiente. Foi, por sinal, uma delas, a irmã Vicência, também assistente social, que trouxe para o hospital, a pedido do diretor da Faculdade de Medicina, uma organização do atendimento ao paciente logo na porta de entrada.

Iniciativas como essa se enquadram entre as ações humanizadoras de uma forma mais paliativa e sutil. “Isso resolve? Não resolve. Mas vai ajudando a minimizar a dor, o sofrimento, a quebrar a rigidez do hospital”, acredita Milza Cintra.

No ano de 2001, foi criado o Cathivar, projeto de ensino, pesquisa e extensão da UFMG. Assim como o Abraçarte, ele nasceu em uma disciplina ministrada pela professora Rosa Nehmy, do Departamento de Medicina Preventiva e Social. Um grupo de alunos manifestou o desejo de promover algum trabalho com doentes terminais. As atividades começaram na Clínica Nossa Senhora da Conceição, especializada no cuidado de pacientes com câncer em estágio terminal e com HIV em qualquer estágio. A clínica foi fechada em junho de 2006. Os estudantes continuam atuando no Hospital das Clínicas e no Risoleta Neves.

 


Revista Diversa nº 16
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