A comunidade que mantém uma inestimável herança cultural e histórica
25 de junho de 2024
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Na Grande Belo Horizonte (BH), onde o concreto se ergue em uma sinfonia de sons, arranha-céus e avenidas congestionadas, residem realidades muitas vezes marginalizadas, apagadas, ignoradas e invisíveis aos olhos apressados: as comunidades quilombolas.
Os quilombos urbanos situados nos municípios da Região Metropolitana de BH compõem uma grande teia de resistência e preservação da cultura afro-brasileira, desafiando as narrativas dominantes de desenvolvimento urbano e progresso, implantadas em nosso imaginário com o intuito de construir um ideário de nação que se assemelhasse à Europa Ocidental.
Na cidade de Ribeirão das Neves, no frenesi do ir e vir, às vezes passamos despercebidos por uma linda igrejinha azul, bem escondidinha atrás de um posto de gasolina em Justinópolis. Nessa igrejinha é onde vive a Irmandade Nossa Senhora do Rosário e a comunidade quilombola de mesmo nome.
Os quilombos em Minas Gerais: suas raízes e legado
Os quilombos no estado de Minas Gerais têm uma história profundamente enraizada na resistência e na luta pela liberdade, desde os tempos da colonização. Durante o período colonial e imperial, o estado foi um dos principais locais do Brasil onde a escravidão foi intensamente praticada, especialmente devido à exploração de ouro e diamantes, umas das atividades mais rentáveis à Coroa Portuguesa na época. Diante das condições desumanas e da brutalidade do sistema escravocrata, muitos africanos e seus descendentes buscaram refúgio nas matas e pedreiras isoladas do estado, onde formaram comunidades autônomas conhecidas como quilombos ou mocambos. Minas é atualmente o segundo estado brasileiro com o maior número de quilombos, sendo o primeiro o Maranhão (BRITO, 2021, p. 32).
“Na época do Brasil colônia, a reunião de cinco negros fugidos já era considerada um quilombo. Os quilombolas eram considerados ‘inimigos da ordem pública’, assim como os povos indígenas que reagiam aos ataques às suas aldeias, defendendo sua liberdade e seu território. O governo português chamava também de ‘guerras justas’ os ataques aos quilombos, promovendo a destruição de muitos deles.” (KISHIMOTO, 2015, p. 47).
A formação desses quilombos foi um ato de resistência e rebeldia contra a opressão e a exploração a que estavam submetidos. Em meio às matas e serras de Minas Gerais, os quilombolas construíram suas comunidades, cultivaram suas terras, praticaram suas tradições e estabeleceram formas de organização social que lhes permitiam viver livres das covardias físicas da exploração.
A estratégia da Coroa Portuguesa em classificar até mesmo pequenos agrupamentos como quilombos e colocá-los inimigos da “ordem pública” evidencia a maneira como o poder colonial buscava manter o controle sobre a população escravizada e garantir a estabilidade do sistema escravista. E, ao considerar qualquer forma de resistência como uma ameaça à “ordem pública”, o governo justificava os ataques violentos aos quilombos e aos povos indígenas como uma forma legítima de defesa dos interesses coloniais.
Hoje, os quilombos de Minas Gerais permanecem como testemunhos vivos da resistência e da resiliência das comunidades afrodescendentes. Além de lutarem pela regularização de suas terras e pelo reconhecimento de seus direitos, muitas dessas comunidades tradicionais também preservam tradições ancestrais, como os reinados: manifestações culturais que remontam aos tempos da escravidão e têm grande significado para as comunidades. Nesse sentido, são festividades religiosas que homenageiam santos, como a Nossa Senhora do Rosário.
Quando as pessoas africanas foram traficadas da África para o Brasil na condição de escravizados, muitos organizaram-se em irmandades cristãs, devido à repressão e intolerância aos seus costumes. Por meio delas, em dias de santos católicos, se cortejava reis e rainhas, figuras simbólicas que representavam a nobreza africana, e essa tradição persiste até hoje.
Irmandade Nossa Senhora do Rosário em Ribeirão das Neves. (Créditos: Prefeitura de Ribeirão das Neves).
A história de Nossa Senhora do Rosário
Nossa Senhora do Rosário é uma figura venerada na tradição católica como a padroeira das Irmandades do Rosário, confrarias religiosas formadas principalmente por quilombolas e pessoas negras. Sua história está intrinsecamente ligada à escravidão no Brasil e à resistência cultural e espiritual das comunidades afro-brasileiras.
Em uma entrevista, Dirceu, capitão da Guarda de Moçambique do quilombo de Justinópolis, em Ribeirão das Neves, nos conta a seguinte história de sua aparição:
“A história que a gente aprendeu, né? Que todo congadeiro conta que é uma história oral, né? Mas eu ouvi muito do meu avô, ouvi muito do Chico Rei II, que eu tive o prazer de conviver com ele […].
E conta-se que Nossa Senhora foi achada nas águas, né? Então ela […] apareceu nas águas pra um negro […]. Esse negro já tava bem… Numa certa idade, cansado, né? Ele estava num beco de café, capinando perto das margens do rio e ele saiu pra fazer umas necessidades e encontrou a Nossa Senhora nas águas.
Aí ele ficou muito perplexo, muito bobo […] e ficou, assim… cabisbaixo. Chegaram perto dele, perguntou e ele falou o que tinha visto, mas ninguém acreditava e ficou aquele negócio todo.
O capataz viu que ele tava coiso, colocou ele no tronco e bateu muito e ele confessou o que tinha visto.
O capataz chamou os dono de engenho, né? E contou pra eles a história. Falaram assim:
– Esse negro tá é contando mentira. Então vamo lá pra nóis ver se nóis acha.
Então pôs ele na frente, guiando o caminho e foi. Chegando lá, eles viu de longe […] e aí ficaram pensando como que iria fazer pra tirar ela das águas.
Aí diz que juntou o povo todo lá, fez uma festa grande […], arrumou uma banda de música pra poder tirar ela das água. Daí tocou e ela veio chegando pra perto, até que tiraram ela das águas e levou pra fazenda e fez uma capela bonita, de ouro, e colocou ela lá. […] No outro dia ela não tava mais não. Fugiu.
E novamente foram lá pra poder pegar ela de novo. […] Aí colocou ela na capela e colocou um cadeado na capela. No outro dia, ela não tava lá de novo.
Fizeram isso por 3 vezes. Daí viram que não tinha jeito, né? Aí os negro juntou, eles fizeram uma reza pra ela […] pra poder ver se ela pode nos ajudar.
Aí, chamou o capataz e falou, né? Pra conceder pra eles uma licença pra eles ir, pra poder cantar pra moça bonita na beirada, né? Das água. Chamou o dono de engenho […] e ele propôs:
– Cês até podem ir, mas ocês num tem nada pra poder fazer a festa […]. E se ocês conseguir, aí nóis vai dar pra vocês um dia de folga pro cês poder ficar com ela. Se ocês conseguir.
E foi um desafio, né? Porque eles achava que eles não conseguiam de forma nenhuma.
– Mas se ocês não conseguir, cês vão trabalhar dobrado […].
Eles teve que aceitar o desafio […]. Então, eles tiveram que arrumar umas tora de pau velho no mato lá, cortaram o couro de uns bicho lá e fez um tambor.
Fez os tambor e foi pra beirada do rio cantar. Batia, batia, batia, cantava, até que ela saiu. Saiu e sentou em cima do tambor.
Aí eles levaram ela pra senzala. Chegou na senzala eles fizeram um quartinho de pau-a-pique, de vara, barreado de barro cor de sapé e colocou ela lá.
À noite eles se reuniam lá, em volta dela, pra poder rezar e ela ficou […]. Aí os fazendeiros tiveram que cumprir com o combinado deles, né? […] Então deu eles um dia pra poder ficar junto com ela.
Foi onde é que surgiu a festa do reinado. O povo abraçou ela e ela abraçou eles e fizeram uma festa grande. […]
Eles cantava em língua que o fazendeiro não entendia. […] E, as vezes, o senhor colocava um negro no tronco pra poder bater, eles batia, batia, batia, batia e o negro não sentia nada. Ele tava batendo no negro e tava doendo na mulher dele […]. Porque tinha muita fé em Nossa Senhora, então ela aliviava as pancada dele e doia na mulher.
É uma história que começou dessa forma.”
(Dirceu, Capitão da Guarda de Moçambique e diretor de patrimônio da Irmandade – entrevista, 03 de junho de 2024).
Desde então, Nossa Senhora do Rosário, ao ver a situação dos escravizados, se comoveu e tem protegido seus festeiros. A história do quilombo Nossa Senhora do Rosário, localizada em Ribeirão das Neves, é um testemunho vivo da resiliência das comunidades quilombolas e de homenagem à essa linda história de Nossa Senhora.
Altar do quilombo Nossa Senhora do Rosário. (Créditos: Rayssa Marrayne).
A história do Quilombo e da Irmandade Nossa Senhora do Rosário em Justinópolis
Os primeiros registros históricos de Ribeirão das Neves remontam ao início do século XVIII. Em 1745, Jacintho Vieira da Costa obteve a sesmaria de uma porção de terra na região central e, em 1747, construiu a Capela de Nossa Senhora das Neves, originando o nome “Fazenda das Neves“. Ao longo dos anos, a fazenda passou por várias administrações e leilões até ser adquirida pelo Capitão José Luis de Andrade, no final do século XVIII, marcando um novo período da história local.
A criação formal do distrito de Neves ocorreu em 1923, subordinado ao município de Contagem, e passou por várias reestruturações administrativas até ser elevado à categoria de município em 1953, desmembrando-se de Pedro Leopoldo. No processo, Neves incorporou o distrito de Justinópolis, anteriormente conhecido como Campanha.
Fundada em meados de 1891 por um pequeno grupo que se reunia para dançar o Candombe, uma dança de origem africana, a Irmandade Nossa Senhora do Rosário de Justinópolis rapidamente cresceu e se transformou em uma organização social quilombola unida por objetivos comuns de vida.
O grupo, inicialmente estabelecido na região de Areias, em Ribeirão das Neves, posteriormente se mudou para outro local dentro do mesmo município, conhecido hoje como o distrito de Justinópolis. Essa mudança foi motivada pelo recebimento de um pedaço de terra doado pela família Labanca, em 1919, que admirava a festa organizada pelo quilombo em homenagem à Nossa Senhora do Rosário. Como forma de honrar a santa, o grupo decidiu adotar o nome de Nossa Senhora do Rosário, em 1927 (BRITO, 2021, p. 60), mesmo ano em que a primeira festa de reinado ocorreu na nova capela.
A comunidade da Irmandade Nossa Senhora do Rosário enfrenta vários desafios, como a falta de comunicação com o poder público, ataques de violência, intolerância religiosa e a perda de território em função da especulação imobiliária e para um posto de gasolina em 2014, que causa diversos transtornos à comunidade. Sem falar do Rodoanel, um empreendimento recente que ameaça parte da Lajinha, um terreno municipal requerido pela comunidade para que eles possam realizar atividades de plantio e afins. Entretanto, a Irmandade permaneceu unida e determinada a preservar sua cultura e seu território. Atualmente, conta com cerca de noventa famílias cadastradas, totalizando mais de trezentos quilombolas, e continua a promover atividades culturais e educativas para seus membros e para a comunidade vizinha (BRITO, 2021, p. 62). Dentre essas atividades, tem-se o Reinado em Honra de São Benedito, São Sebastião, Kizomba no Quilombo e, é claro, o reinado em Honra à Nossa Senhora do Rosário de Justinópolis, além de várias oficinas e pagodes que acontecem no território. Toda programação se encontra no Instagram da comunidade.
Mesmo não residindo, de forma comum, no espaço físico da sede do quilombo, em que há apenas um lote onde se encontra a capela, os quilombolas da Irmandade Nossa Senhora do Rosário continuam a manter viva sua identidade e memória afrodescendente. A essência de ser quilombola vai além do espaço geográfico em que se reside, está enraizada nas experiências compartilhadas, nas tradições culturais preservadas e na luta coletiva por reconhecimento e justiça.
O combate ao preconceito e a busca pelo reconhecimento
O preconceito e a ignorância em relação às comunidades quilombolas de congado e reinado são lamentavelmente comuns e refletem uma série de estereótipos e discriminações enraizados na sociedade brasileira. Essas comunidades carregam consigo uma inestimável herança cultural e histórica. Contudo, a falta de reconhecimento por parte das autoridades e da sociedade em geral faz com que, muitas vezes, as comunidades quilombolas enfrentem dificuldades para ter seus direitos reconhecidos e para acessar serviços básicos, como educação, saúde e infraestrutura.
Para combater o preconceito e a ignorância em relação às comunidades quilombolas e de reinado, é fundamental promover a educação patrimonial e formal, além da conscientização sobre a história e a cultura desses grupos. É necessário também garantir o reconhecimento e a valorização de suas tradições culturais, bem como de políticas públicas que garantam seus direitos e promovam, de forma mais prática, sua inclusão social e econômica.
Congadeiros da Irmandade Nossa Senhora do Rosário, em Justinópolis, Ribeirão das Neves. (Créditos: Prefeitura de Ribeirão das Neves).
Enquanto o “progresso” avança implacavelmente, muitas vezes às custas das comunidades mais vulneráveis, os quilombos urbanos permanecem como testemunhas vivas das desigualdades e injustiças, mas também das resistências que permeiam nossa sociedade. Eles nos lembram que o verdadeiro desenvolvimento só pode ser alcançado quando todos têm voz e espaço para existir plenamente.
Por fim, venha conhecer também “MetropoliTRAMAS“, do Espaço do Conhecimento UFMG. A exposição explora a rica história de formação da Grande BH, destacando também a resistência e a cultura quilombola que precede a formação dos 34 municípios. Na mostra, há uma instalação intitulada “Tramas Culturais”, onde os visitantes podem conhecer mais sobre as tradições, práticas e ancestralidades que moldam as identidades das comunidades quilombolas da Região Metropolitana de BH.
[Texto de autoria de Rayssa Marrayne César de Sousa, estudante do curso de Antropologia e bolsista do Núcleo de Ações Educativas e Acessibilidade]
Referências
BRITO, G. T. G. de. O lugar e a identidade quilombola: uma abordagem sobre o processo histórico da Irmandade do Rosário, em Ribeirão das Neves (MG). 2021.
História De Ribeirão Das Neves – Prefeitura Municipal.
Irmandade do Rosario de Justinopolis – parte ½.
KISHIMOTO, A. Os quilombos em Minas Gerais na época da escravidão. In: DIAS, P. (Org.). O Reinado do Jatobá da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. São Paulo: Associação Cultural Cachuera! 2015, p. 46-48.
LOPES, J. A história de Nossa Senhora do Rosário. In: DIAS, P. (Org.). O Reinado do Jatobá da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. São Paulo: Associação Cultural Cachuera! 2015, p. 20-23.
ZIRIGANGA. Documentário apresentado por Dirceu Ferreira Sérgio.
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