(Oficina ‘Dramaturgias e processos criativos’. Foto: Foca Lisboa / UFMG)

Ao visitar um laboratório do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, é provável que um leigo entenda pouco ou nada das ações tomadas por um pesquisador que injeta um líquido colorido em uma cultura de células e fica olhando para elas, esperando uma reação. Algo parecido ocorreria em uma visita aos laboratórios do Departamento de Física, do Departamento de Química ou do Departamento de Ciência da Computação da Universidade, como a tantos outros. No entanto, algo diferente ocorre nas Ciências Sociais Aplicadas, nas Ciências Humanas e, principalmente, no campo das Artes. Apesar de não se espantar com essa inevitável ignorância que se revela quando nos defrontamos com a pesquisa avançada dos campos da saúde, das ciências exatas e das tecnologias, o espectador leigo tende a acreditar que, em relação às artes e às demais humanidades, as reflexões e ações devam ocorrer em um nível de ampla compreensão.

Em razão disso, não espanta que, enquanto os alunos da oficina Interrogações com Marcelo Gabriel estivessem fazendo seus exercícios no entorno do Teatro Universitário e da Escola de Belas Artes, houvesse olhares ressabiados e até mesmo quem chegasse a gritar de longe, em tom crítico: “Eita!”. Em seguida, capturadas pelos olhares antes mesmo que pudessem se esconder, as senhoras que gritaram a pretensa advertência terminaram por simular o sorriso condescendente de quem precisa assumir: eu não estou entendendo isso — e isso me incomoda.

Na oficina de Marcelo Gabriel, ministrada durante todo o 49º Festival de Inverno da UFMG, o performer e diretor da Companhia de Dança Burra desenvolveu com alunos possibilidades de experimentação em dança e performance artística, com foco na voz. Em alguns dias, alunos e professor percorreram o entorno dos prédios onde eram realizadas as oficinas fazendo exercícios — o estar em público era parte integrante da atividade. Em outros, reuniram-se no “espaço vinho” do Teatro Universitário para realizar atividades que qualquer leigo – este jornalista, inclusive – era incapaz de compreender.

“Você pode ser correto, perfeito, exato na forma. Mas isso não significa absolutamente nada. O fim não é o resultado, o importante é a condição, a maneira de buscar. Buscar com o corpo. Desbravar o seu próprio caminho interno”, repetia Marcelo, enquanto os alunos realizavam movimentos corporais em câmera lenta, atentos aos mínimos detalhes. “E a tensão nessa mão aí?”, perguntava o professor, compreendido de imediato pelo aluno que não realizava o procedimento da forma pretendida. “Olha os ombros…”, alertava a outro, sendo de igual maneira acatado.

Oficina ‘Interrogações com Marcelo Gabriel’. Foto: Foca Lisboa / UFMG

De alguma forma, a experiência de um festival universitário parece ser a experiência de se confrontar o complexo, confrontar a ignorância e aceitá-la como parte – o primeiro degrau – do caminho em direção ao conhecimento. As oficinas parecem demonstrar isso. Na descrição de sua atividade, Marcelo Gabriel perguntava: “Como mobilizar o texto revelando seu fluxo orgânico conectado com a respiração e o corpo? O que inicia um movimento? O que nos conecta?” No que diz respeito à Universidade, de fato, seja nas humanidades ou nas ciências exatas, seja na organicidade das artes ou na virtualidade abordada pelas tecnologias, a resposta parece ser uma só: o que nos conecta é a busca pelo conhecimento — e essa é a mesma, em qualquer campo que se esteja.

Os sentidos da poesia
No centro de um círculo, o escritor Ricardo Aleixo pede que os participantes da oficina Palavra falante: uma introdução à performance intermídia fiquem de costas um para os outros, mantendo-se em círculo. Em seguida, avisa: vai repetir várias vezes dois versos de Bertolt Brecht colhidos ao acaso no volume que tem nas mãos. Ele pede então que os alunos passem a repetir os versos junto a ele – “mas quando se sentirem confortáveis para isso”, frisa. E, nos instantes seguintes, repete várias vezes as famosas frases do poeta alemão: “Não desperdicem um só pensamento com o que não podem mudar. / Não levantem um dedo para o que não pode ser melhorado.”

Um minuto depois, um dos alunos começa a entoar uma melodia, de improviso, fazendo o background para a leitura do professor. Ricardo o interrompe: “Não, não. O que quero é que repitam comigo os versos – quando se sentirem seguros para isso. Até lá, não emitam outros sons.” E volta a repetir os versos, como em um mantra. Passado um novo minuto, outro aluno se arrisca na experiência: começa a repetir em voz alta os versos narrados pelo professor – só que no contratempo, intercalando sua voz com a do professor. É a deixa para que Ricardo intervenha com uma nova correção de rota: “Não, não é isso. Tentem falar junto comigo.” Nesse momento, os alunos finalmente passem a recitar os versos junto ao professor, em uníssono. Nos próximos minutos, Ricardo vai provocá-los a ir diminuindo o volume de suas vozes lentamente, de forma a, após algum tempo, restarem apenas sibilos, suspiros – apenas lembranças sonoras de frases outrora entoadas, já desprovidas de sentido, de significado.

Apesar de o nome de sua oficina aludir à ideia de “performance intermídia”, Ricardo parece provocar seus alunos a vivenciar não uma performance, exatamente, no sentido artístico de uma encenação que se realiza para ser percebida por outra pessoa, mas uma real experiência. “A intenção era levá-los a perceber os timbres, os sons, as texturas, as modulações – tudo aquilo que não é potencializado na prosa, que esta tem um compromisso com a narrativa, com a ação.” Em outras palavras, Ricardo buscava fazê-los experimentar a poesia no próprio corpo; na materialidade da própria voz. Nesse processo, explicou o professor, “a poesia vai destacando – a cada momento, a cada fonema, a cada sílaba, a cada palavra, a cada verso – uma consciência física dos elementos do meio em que ela ocorre”, ou seja, do corpo e do mundo. “É um processo que vai trazendo um senso de perda semântica”, disse, falando em aproximações entre sonoridades “que ora se atritam, ora se acariciam, expandindo a consciência”.

Oficina ‘Palavra falante: uma introdução à performance intermídia’. Foto: Foca Lisboa / UFMG

O escritor avança e se aprofunda na perscrutação dos sentidos do que se convencionou chamar poesia e das implicações de sua “performance”, aqui tomando-se a palavra no seu sentido literal de realização material de algo. “O que se está mostrando nesta atividade é como um específico posicionamento de vogais em relação a consoantes resulta em algo que aponta tanto para a vastidão quanto para a falta total de amparo, a solidão mais extrema, ou mesmo para o sentimento de comunhão, de comunidade – e isso em instantes que se tornam irrepetíveis. Os mesmos versos que te deixam arrepiado de emoção em um momento, no momento seguinte podem trazer o terror, uma alegria súbita – e que tampouco será preservada”, explica o escritor. “Aqui [na poesia] não se está contando uma história”, lembra.

Assim Ricardo Aleixo procedeu durante os oito dias de sua oficina. Por meio de exercícios individuais e coletivos, explanações teóricas, conversas informais, audições comentadas de vídeos e áudios e da leitura em voz alta de textos de diversas épocas e culturas que tematizam o corpo humano, ele propiciou aos participantes a possibilidade de vivenciar a experiência de construção dessa “performance intermídia” – em outras palavras, a experiência material da poesia. No mês passado, durante a 15ª Festa Literária Internacional de Paraty, o poeta apresentou uma performance em que realiza, na prática, essa experiência da poesia que quis propiciar aos alunos do Festival. Confira:

 

Palavra no espaço e no corpo
Na sala ao lado, o ator Márcio Abreu, diretor da Companhia Brasileira de Teatro, ministrava a oficina Dramaturgias e processos criativos. “Eu trouxe alguns exercícios práticos, mas estou oferecendo também aulas mais teóricas, dando acesso a referências, materiais que fazem parte do meu repertório como dramaturgo e diretor”, explicou. “Desde o segundo dia, cada aluno está criando um objeto dramatúrgico, um texto, mas a oficina tem também uma dimensão de criação coletiva, que tem sido desenvolvida paulatinamente.”

Oficina ‘Dramaturgias e processos criativos’. Foto: Foca Lisboa / UFMG

Márcio detalhou as particularidades da atividade. “Estamos trabalhando a ideia de dramaturgia para além da palavra escrita, ou seja, trabalhando como ela se dá no espaço, no corpo, na relação com o possível espectador, os elementos sonoros. É um pensamento mais amplo do que seja dramaturgia. Por isso a oficina fala em dramaturgias no plural.”

Mais interessado em trabalhar a “potência da experiência” que em levar seus alunos a produzirem um produto artístico, Márcio precisou abrir mais vagas na oficina que as previstas inicialmente, dada a procura. “Tenho 25 alunos na oficina, ao todo. Estamos mergulhando no campo da pesquisa, do estudo, da criação plural. O objetivo é que essas oito manhãs se convertam em um acontecimento, uma experiência, mais do que em um produto que condense essa experiência”, disse.

Carolina Cavalcanti e Vinícius Córdova, alunos do Centro de Formação Artística e Tecnológica (Cefart) do Palácio das Artes, participaram da atividade. No intervalo de uma aula, Carolina conta o que tem aprendido durante a oficina. “Tem sido incrível, porque a gente tem contato com o texto e com a encenação, em si. O professor passa uns exercícios bacanas de texto, de corpo – de tudo, sabe? De como chegar mesmo a uma real dramaturgia; de como transformar algo que já existe. Em vez de falar em criar, ele fala muito em transformar o que já existe.”

Vinícius Córdova e Carolina Cavalcanti, alunos do Cefart. Foto: Ewerton Martins Ribeiro / UFMG

Vinícius explica melhor essa proposta. “Ele trabalhou com a gente a imagem do artista como um trapeiro, lembrando uma figura do Baudelaire: um sujeito que pega os trapos, os restos que sobram das roupas dos outros para construir a própria roupa. Essa é uma ideia que está trabalhando, a coisa de criar a partir de fragmentos.” Instantes após essa conversa, Carolina e Vinícius correram de volta para a sala: o intervalo havia acabado.

O Festival de Inverno da UFMG, que neste ano completa 50 anos de fundação, se encerra neste sábado, 5, com um espetáculo da Companhia Brasileira de Teatro, dirigido por Márcio Abreu. A premiada peça Isso te interessa? será montada no auditório da Reitoria, a partir das 20h, com entrada franca, assim como toda a programação do Festival.