Palestrantes discutem ancestralidade africana e carter espiralar do tempo
Na manh desta quarta-feira, 3, a experincia esttico-sonora da festa do Reinado de Nossa Senhora do Rosrio motivou a comunicao que abriu o ltimo dia de atividades do Ciclo de Palestras do Festival de Vero 2016. Em sua exposio, a professora Glaura Lucas, do Departamento de Teoria Geral da Msica da UFMG, retomou as reflexes que reuniu em sua tese de doutorado, Msica e tempo nos rituais do congado mineiro dos Arturos e do Jatob, defendida na UFRJ em 2005.
Glaura explicou que o congado trata da trajetria dos negros em Minas Gerais, seus rituais e formas de transmitir conhecimento entre geraes. uma manifestao que diz respeito forma como os negros absorvem o catolicismo e o transformam a partir da sua viso de mundo, mas tambm uma demonstrao de resistncia cultural, poltica, diz. uma manifestao que remete ancestralidade, s vivncias nas senzalas.
A festa deixa transparecer uma forma prpria que os negros tm de honrar os santos catlicos. Eles introduzem elementos de seu modo de pensar e perceber a vida nesse processo, a sua relao com a ancestralidade, que, para eles, muito importante, diz.
Glaura Lucas [na foto acima] explicou que, no congado, a msica (ou melhor, o canto, termo que a professora afirma ser mais pertinente e mais usado no contexto do congado, por englobar toda a complexidade da experincia esttico-sonora da festa) se estabelece como forma de comunicao e interao comunitria. No Rosrio, o tambor o meio de comunicao entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Ele atua como interface com outra realidade de espao-tempo, estabelecendo um processo temporal cclico, a relao com os antepassados.
A professora relatou certas especificidades da celebrao. No congado, a msica no se d em um contexto: ela prpria o contexto para que as relaes sociais aconteam e se estabeleam, disse. E as msicas no tm claros marcos definidores de incio e fim, tal como se d na msica cotidiana. H uma ideia de repetio, de msica espiralada.
Imagens e coreografias A ideia de tempo espiralar foi aprofundada na palestra seguinte, ministrada por Leda Martins, professora da Faculdade de Letras e diretora de Ao Cultural da UFMG. Em sua abordagem, Leda apresentou uma experincia de construo de memria por meio das coreografias e imagens do tempo espiralar, no mbito das corporeidades e performances negras, campo em que o prprio congado se situa.
Contudo, Leda Martins no se restringiu ideia de tempo espiralar no contexto do congado. Ela tambm falou sobre o tema no mbito da cultura indgena maxakali e nas demais culturas ao longo da histria, inclusive ocidentais.
Na verdade, as narrativas fundacionais de todas as grandes civilizaes, assim como das culturas que formatam essas civilizaes, iniciam-se por meio da ideia de tempo. Na judaico-crist, por exemplo, o gnese inaugura a cronometria; o antes e o depois, a concepo de temporalidade. Na grega, temos o deus Chronos. Em todas as grandes civilizaes, o tempo nos habita e nos constitui como sujeitos, afirmou.
Segundo Leda Martins, a ideia de tempo sempre se materializou por meio de narrativas. A experincia do tempo em todas as sociedades se inscreve com o surgimento da palavra, ainda que, em cada caso, por diferentes experincias de temporalidade", ressalvou, acrescentando que a ideia de ancestralidade, nesse contexto, introduzida nas Amricas pelos africanos. Trata-se de pensamento filosfico restitudo nas Amricas por um suporte especfico, o corpo. pelo corpo que conceitos das mais variadas ordens, inclusive a filosfica, so reinscritos na Amrica pelos negros, disse.
A professora exemplificou essa relao com a ancestralidade, no apenas na Amrica, mas em outros ambientes no ocidentais espalhados mundo afora. Nas Amricas, na poca da escravido, os povos escravizados tentavam se comunicar com os ancestrais enterrados na frica. Em pocas de guerra, famlias de vrias partes do mundo vendiam todas as posses que tinham para recuperar os corpos de parentes mortos.
Nesse sentido, observou Leda, o tempo no segue uma linha reta. Ele espiralar, com passado e futuro recorrendo no presente. uma ideia de sincronicidade de passado, presente e futuro, que inclui tanto os que j morreram quanto os que ainda vo nascer. Por isso, no congado manifesta-se a ideia de que a msica no tem fim. Nada tem comeo, nada tem fim. O tempo espiralar.
As palestras do Festival de Vero 2016 foram todas ministradas no Conservatrio, no centro da capital mineira. Outras atividades prosseguem na tarde desta quarta e na quinta-feira, dia 4. O encerramento ser amanh, no Conservatrio, s 18h30, com apresentao pr-carnavalesca do bloco Magnlia Brass Band.
Fonte: Agência de notícias UFMG

