Volume 23 – n 2

Editorial:

Dedicamos boa parte deste fascículo à arqueologia de Minas Gerais, no momento em que festejamos o quadragésimo ano de existência do Setor de Arqueologia do Museu de História Natural e Jardim Botânico da Universidade Federal de Minas Gerais (MHNJB/UFMG). Em todos os textos relacionados com esta disciplina se verifica o enriquecimento que proporciona a colaboração com especialistas de várias áreas – das ciências da Terra, das ciências da Vida e das ciências do Homem.

Iniciamos com dois artigos que tratam do sítio arqueológico Veredas III; excepcionalmente bem preservado, guarda os vestígios da atividade da população ceramista indígena de tradição Sapucaí – que ocupou outrora o centro do atual estado de Minas Gerais. Este sítio foi identificado pelos pesquisadores do Laboratório de Estudos Humanos da Universidade de São Paulo (USP), que nele realizaram uma coleta de superfície. Como o estudo das populações ceramistas não entrava nos objetivos do seu projeto, repassaram a informação aos arqueólogos da UFMG, aos quais franquearam também o acesso ao material coletado. Tendo em vista as características inabituais do sítio, decidimos realizar uma escavação completa do local, a qual destinei um resto de verba da Missão Franco-brasileira de Minas Gerais. O resultado da pesquisa serviu de base para a dissertação de Mestrado em Arqueologia de Igor Rodrigues e da monografia de final de curso em arqueologia de Gilberto Gardiman (este, já engenheiro de alimentos). Uma síntese dos resultados obtidos nestes dois trabalhos complementares é apresentada nos dois artigos “O Sítio Veredas III: uma ocupação de grupos ceramistas e horticultores fora das grandes aldeias” e “Veredas III e a preparação do cauim”.

No primeiro deles, I. Rodrigues analisa a localização do sítio – em compartimento topográfico insólito – e os vestígios materiais (cerâmicos e líticos). Aproveitando a boa preservação do sítio, determina o número de vasilhas de cada categoria morfo-funcional e interpreta a organização dos restos arqueológicos. Pode assim mostrar que não se tratava de um local de moradia, mas de um espaço reservado, centro de atividades provavelmente rituais, relacionadas a festim e consumo de bebidas fermentadas. No segundo artigo dedicado a este sítio, Gilberto Gardiman, Igor Rodrigues, Leandro Cascon e Andrei Isnardis analisam os microresíduos presentes na cerâmica e nos instrumentos líticos, assim como as marcas tafonômicas nas paredes das vasilhas e nas alterações dos grânulos de amido. Os resultados mostram que os diferentes tipos de vasilhas encontradas no sítio – e não apenas as grandes jarras – tinham sido utilizados para conter e processar diversos vegetais cultivados (milho, batata doce, leguminosas), particularmente para obter bebidas fermentadas semelhante ao cauim. Os autores fazem também uma revisão da preparação desta bebida entre as populações indígenas da América do Sul para reforçar as interpretações do material arqueológico. Este artigo evidencia os benefícios de uma integração entre a biologia, a arqueologia, a antropologia e a ciência da alimentação.

O terceiro artigo apresenta também alguns dos resultados obtidos a partir de uma dissertação de Mestrado em arqueologia realizado no âmbito do programa em Antropologia e Arqueologia da UFMG. Também é decorrente das boas relações que existem entre os membros da equipe do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos e do MHN-UFMG. Convidado por Astolfo Araujo a participar das escavações na Lapa do Niactor, Leandro da Silva se dispôs a estudar os sedimentos deste abrigo ocupado pelas antigas populações de Lagoa Santa. Há tempo estávamos interessados na gênese dos sedimentos em abrigos ocupados pelos pré-históricos e já tínhamos incentivado Ione Malta e Daniel Vieira de Souza a trabalhar sobre a formação dos níveis que continham componentes antrópicos. No caso da Lapa do Niactor era particularmente importante o volume dos pacotes de cor cinzenta clara que formavam o essencial da deposição do início do Holoceno; tanto poderiam ser resíduos de fogueiras, quanto alterações carbonáticas, ou uma mistura destes dois tipos de elementos. Nossa expectativa era que, caso fossem de origem antrópica, seria possível, a partir da quantidade de cinzas, avaliar a intensidade das atividades pirogénicas praticadas por seus frequentadores. Tal avaliação seria um elemento importante para discutir a intensidade/frequência das ocupações pré-históricas. Nesta direção orientamos Leandro da Silva, inicialmente a verificar que o volume de resíduos de combustão formava o essencial dos depósitos holocênicos na Lapa do Niactor e, em seguida, a medir o volume de resíduos produzidos por fogueiras feitas com lenhas de essências locais variadas – antes e depois de pisoteio – a partir da observação de fogos festivos (de São João) e de uma fogueira experimental controlada. Com esta informação e depois de avaliar os fatores de erosão no abrigo, pudemos mostrar que um número muito modesto de fogueiras – mesmo pequenas – por ano teria sido suficiente para produzir o pacote sedimentar preservado na Lapa do Niactor.

O artigo de Rodrigo Dutra e Mário Cozzuol analisa a fauna de pequenos roedores coletada pelos arqueólogos da UFMG durante a escavação da Lapa do Dragão em 1977.

Naquela oportunidade foram escavados 23 m³ neste abrigo do norte de Minas Gerais; o pacote com vestígios arqueológicos continha o essencial dos restos de fauna e apresentava uma espessura média de cerca de 1m. Não se tratando, provavelmente, de restos alimentares, mas de vestígios de animais que moravam no abrigo, o foco do estudo foi dirigido ao significado paleoclimático das espécies encontradas. Uma variação nítida na representação relativa dos gêneros de roedores ocorre ao longo da sequência sedimentar de 11.000 anos, cuja evolução se mostra concordante com os registros palinológicos obtidos no norte do estado de Minas Gerais. Desta forma se ilustra a validade de se usar a fauna de pequeno porte para determinar o ambiente no qual se encontravam as populações préhistóricas. De fato, os registros arqueológicos poderiam ser mais utilizados pelos zoólogos como fonte de conhecimento sobre o passado recente da fauna brasileira.

Nos últimos decênios, os arqueólogos costumam dar pouca atenção aos vestígios arqueológicos que lhes são trazidos por não profissionais, sob o pretexto que, fora de contexto, os artefatos não tem significado nem valor para o conhecimento. Embora isto seja correto em tese, os achados fortuitos não devem ser desconsiderados. Em primeiro, porque mesmo peças descontextualizadas podem ter utilização didática, em aulas ou em exposições. Em segundo, porque podem trazer informações preciosas sobre ocorrências raras ou até então desconhecidas. É o caso de algumas pontas bifaciais de qualidade excepcional encontradas casualmente no centro, norte e nordeste do país: os arqueólogos costumam encontrar em suas escavações apenas o refugo da sua fabricação e peças defeituosas. Isto, porque os artefatos de boa qualidade eram geralmente levados e utilizados pelos pré-históricos fora dos locais normalmente acessados pelos pesquisadores. Em compensação os camponeses – que conhecem profundamente e percorrem seu território – tem mais chances de encontrar, ao longo da sua vida, objetos perdidos longe dos sítios de ocupação pré-histórica mais densa. Quando se dispõem a informar os interessados – sejam eles eruditos locais ou “doutores” que os visitam (geólogos, agrônomos, arqueólogos, etc.), podem se tornar preciosos informantes e até, colaboradores. O texto de Maria Jacqueline Rodet é fruto de uma dessas colaborações. Há vários anos, Fenando Lameira (geólogo do CDTN) vem nos informando dos achados que lhe são mostrados pelo garimpeiro mineiro Israel Ramos da Cruz do; trata-se ora de pedras formatadas pela erosão natural, ora de artefatos abandonados pelos indígenas pré-cabralinos. A nota de J. Rodet descreve uma ponta bifacial achada pelo menino Leandro Paranhos, que nos foi doada através de intermediação do garimpeiro e do geólogo. De feitura técnica e esteticamente impar, trata-se sem dúvida de uma peça de prestígio, importada de longe e que devia ter um significado importante para quem a escondeu na região de Itamarandiba.

Embora não pareça ter relação com a arqueologia mineira, o artigo seguinte “Economia verde, sustentabilidade e as plantas úteis do Brasil: contribuição do agrônomo/naturalista mineiro Camilo de Assis Fonseca Filho” não deixa de ser uma homenagem a um colaborador do Setor de Arqueologia. Com efeito, o “Doutor Camilo”, como era carinhosamente apelidado no Museu, foi um importante conselheiro para a bióloga Eunice Resende que, durante muitos anos, foi a principal responsável pela análise dos vestígios vegetais encontrados nas escavações que realizamos no vale do rio Peruaçu. Nos anos de 1950, o Doutor Camilo plantou a maior parte das árvores que compõem o atual jardim Botânico do Museu de História Natural da UFMG (então chamado “Instituto Agronômico”). Tinha deixado a Instituição quando chegamos ao recém-criado Museu de História Natural, em 1975. Voltou ao espaço que tinha arborizado nos anos de 1990; escondendo sua idade verdadeira, permaneceu em atividade no Museu muito depois de ter alcançado a idade da aposentadoria compulsória, atendendo muitos visitantes aos quais aconselhava a utilização de remédios vegetais. Receosa de que pudesse ser acusado de exercício ilegal da medicina, a direção do Museu teve finalmente que obrigá-lo a se retirar. Ainda assim, o Doutor Camilo não desistiu de servir a população e foi autorizado a criar uma horta medicinal na Faculdade de Medicina.

Os autores do texto, Maria G. L. Brandão, Bianca Menezes, Isabella Santana e Juliana de Paula-Souza, resgatam duas publicações pouco conhecidas de Assiz Filho – “considerado o brasileiro que mais árvores plantou em uma vida”. Nelas, o engenheiro agrônomo descreve a morfologia e menciona a utilidade prática de centenas de espécies de árvores. As autoras também cruzam as indicações deixada por Assiz Filho com os modernos estudos fitoquímicos e de bioatividade, evidenciando a qualidade do trabalho do naturalista.

A seção sobre atividades do Museu comemora o quadragésimo ano de existência do Setor de Arqueologia – que, em anos mais recentes, foi dividido em Setor de Arqueologia pré-histórica e em Setor de Arqueologia histórica. Desde então, a equipe de arqueologia foi um dos grupos mais atuantes de pesquisa do MHNJB e foi responsável pela continuidade da revista Arquivos.

André Prous
Editor.


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