Quem são os contadores
Antes de prosseguir com a leitura, caso queiram, vocês poderão conhecer um pouco mais sobre os (as) narradores-contadores (as) no link. Clique aqui.
A tentativa de descrever o narrador-contador gravado não foi uma tarefa fácil. Tal missão, nas palavras de Walter Benjamin (1985), às vezes torna-se impossível, pois o narrador, “por mais familiar que seja seu nome”, ele “não está de fato presente em nós, em sua atualidade viva”. Ele é algo distante, e que se distancia ainda mais”. Descrever um narrador, “não significa trazê-lo mais perto de nós, e sim, pelo contrário, aumentar a distância que nos separa dele (BENJAMIN, 1985, p.195).
Mesmo sendo impossível, trouxemos à cena descritiva uma possível ou possíveis imagens do narrador-contador inventariado. Nota-se, contudo, que os desafios que se impuseram foram de diversas ordens. O primeiro é que os projetos em questão buscaram, aparentemente, mais o registro da narrativa do que constituir o perfil do narrador e sua história. Isso ficou evidente quando me pus a ouvir as fitas cassetes e ao ler as produções e publicações que decorreram das narrativas. Cita-se os trabalhos de Queiroz (1999), 7 histórias de encanto e magia (livro e CD); Queiroz et all (2009), No tempo em que os bichos falavam (livro e CD); e Antunes (2009), Recontos do Jequitinhonha e alhures. Esses três livros, publicados com narrativas dos contadores, não se ocuparam em descrever ou caracterizar os (as) narradores (as), ainda que sucintamente. Os (as) narradores (as), no contexto das publicações, não foram o foco dos trabalhos publicados. Deu-se destaque à riqueza da narrativa, ao dialeto do Vale e à transcriação.
Pereira (1996), no livro o Artesão da Memória, é a autora que diretamente fala sobre a vida de seis narradores-contadores que gravou pelo projeto Literatura Oral. Assim, ante a lacuna existente, foi feito um exercício para constituir o perfil destes a partir de publicações que surgiram exteriores aos projetos em questão e ao término destes.
De início, na tentativa de caracterizar, criamos o quadro por contadores, projeto e por município, para posteriormente criar um perfil geral, o mais heterogêneo possível, tendo em vista que não se encontram atualmente informações de todos os narradores. Assim, as considerações que se tecem sobre estes é uma tentativa de resgate sempre parcial da história de suas vidas. Todavia, acreditamos ser importante perfazê-la para preservação da memória destes, tendo em vista que são suas narrativas que compõem o produto educacional Narrativas em Rede.
Assim, para suprir tal falta, estabeleceram-se meios de busca, sendo: a) pesquisa no catálogo de narradores-contadores dos projetos Literatura Oral e Quem Conta Um Conto Aumenta Um Ponto; b) escuta das fitas cassetes na ausência de informações no catálogo; c) busca em livros, em dissertações, na rede de computadores, sites, portal de prefeituras, de notícias do Vale e outras.
Cabe destacar que alguns narradores-contadores não apresentam idade e nem mesmo sobrenome completo, dado que segundo Pereira (1996) o foco da pesquisa empreendida inicialmente pelo projeto Literatura Oral era “despertar o interesse para que se resgate um patrimônio literário que corre sérios riscos de se perder e, mais ainda, apreender a vocação popular para a arte de contar” (PEREIRA, 1996, p. 22). Esse argumento ficou evidenciado quando ouvi as fitas cassetes gravadas. Na busca pela “vocação popular de narrar”, os pesquisadores sempre apresentavam para o narrador a recorrente pergunta: “com quem você aprendeu a contar histórias”?
No link disponível acima é possível conhecer um pouco dos (as) narradores-contadores (as) por município, por nome, suas idades, ano da gravação e projeto quem realizou a gravação.
De antemão, adianta-se que o conjunto identificado é bastante heterogêneo em sua configuração e diverso são os modos como os narradores-contadores reproduzem sua existência. Em sua grande maioria, constituem-se por agricultores (as), alguns poucos servidores públicos, tropeiro, garimpeiros, comerciantes, artesãos (ãs), domésticas, benzedeiras, padre, turmeiro e boias-frias que alternavam intersafras com agricultura no Vale.
A tentativa de defini-los, de início, a partir de seu ofício pode ser reducionista, pois o ser humano não se constituiu apenas a partir deste, mas constitui-se também por meio dele. Deste modo, Vicente Gonçalves Afonso – mais conhecido como Vicente Nica, nascido em 1932 na Grota do Barreiro, em Turmalina, posseante em fazenda posteriormente reivindicada por fazendeiros – não se tornou Vicente Nica apenas pela forma como lavrava a terra enquanto agricultor, mas enquanto agricultor que lutou e denunciou a expropriação das terras no ciclo desenvolvimentista empreendido na década de 60/70.
É histórica a luta travada por Vicente Nica e outros posseiros de Mato Grande e São Miguel para manter suas posses quando a família França reivindicava para si a propriedade de 14 mil hectares de terra, já ocupadas por lavradores que de geração em geração faziam uso destas para sobrevivência (LEITE, 2015, p. 66-83). Além do mais, Vicente Nica denunciou a ocupação das chapadas pela monocultura do eucalipto que se alastrava pelo Vale, encurralando os agricultores nas grotas pela tomada das áreas de uso comum. Destacou-se por pensar outro modelo de agricultura que procurava consorciar uso do solo com proteção ao meio ambiente (LEITE, 2015, p. 66-83).
Ivo Silvério Rocha – menos conhecido pelo modo como reproduz sua existência, também agricultor, foi boia-fria e também garimpeiro – gravado em 1989 é, segundo Queiroz (2015, p. 39), “capitão ou contramestre, ou patrão do Catopê de Milho Verde, é um dos últimos (senão o último) mestre de vissungos de enterro”. Também é um “guardião da tradição oral banto em Minas” (QUEIROZ, 2015, p. 37). O próprio Ivo Silvério se intitula o último mestre de vissungo de enterro. Ivo faleceu em 2024, no curso da dissertação de mestrado e da elaboração do site (in memoriam).
Em alguns casos, o narrador-contador é um agricultor, poeta, comerciante, artesão, como é o caso de Abel Tareco (BORGES, 2008). É artesã como Mestre Zefa, que migrou da Bahia fugindo da seca, vindo a refugiar-se em Araçuaí em 1962. Constituiu-se artesã num processo. Inicialmente começou com obras em barro e na madeira tornou-se mestra, sabendo como poucos explorar em suas peças as características das madeiras da região. Atualmente tem obras espalhadas com colecionadores e amigos na Alemanha, Itália, França, Áustria, Holanda, Estados Unidos e por todo o Brasil.
A narradora é benzedeira como Sá Luíza e Generina Isidoro da Silva, de Araçuaí-MG, mulheres de fé e uma vida a serviço do povo. Senhora Generina faleceu com 106 anos em 22 de abril de 2024, com direito a luto oficial do município por 03 dias. De acordo com o decreto no 082 de 23 de abril de 2024, art. 1o “Sua história foi abençoada com o dom da generosidade. Suas palavras de bençãos tocaram inúmeras vidas por meio de sua reza, dedicou-se à religiosidade, fé e amor ao próximo”. Sá Luíza também falecera já centenária com 111 anos em 2005.
O contador é agricultor, é lavrador, é boia-fria como Neném de Araçuaí um itinerante que retorna com outros saberes. É tropeiro, como João Vaz de Deus, 87 anos quando gravado, “quarenta e dois vividos como tropeiro” (PEREIRA, 1996, p. 20). João Vaz de Deus trabalhou quase meio século no ofício, segundo ele,
A tropa saía daqui, a tropa num tinha massa grande. Só tropa pequena de três légua. A massa maior de tropa era quatro légua. Daí pra trás. Daqui a Teófilo Otoni são doze ponto de arrancha. De volta a mesma coisa. Doze dia pra cá, doze dia pra lá (PEREIRA, 1996, p. 21).
O narrador-contador é “andarilho, é migrante que trabalhou a vida toda como turmeiro em sítios e fazendas até se estabelecer, aos dezoito anos, na cidade em que vive”, como o é seu Oliveira, 81 anos, gravado no Serro em 1988 (PEREIRA, 1996, p. 20).
É garimpeiro, agricultor, poeta e escritor. Foi inspiração. É servidor público dos correios como Pedro Braga, que para não deixar cair no esquecimento as lembranças do Vau, passou a registrar tudo em papel. De acordo com Pereira (1996),
No seu objetivo de não deixar que sua terra caia no esquecimento total, ele registra cuidadosamente nos seus cadernos toda a história do lugar. As lendas referentes aos pontos topográficos, as famílias proprietárias e sua descendência e os casos dos escravos… os cadernos de Seu Pedro são preciosidades à espera de estudiosos que, admitindo o espaço da diversidade e do conflito, sempre presentes, queiram dar-lhes agora a voz (PEREIRA, 1996, p. 21)
Souza (2006) foi um destes pesquisadores a que se refere a autora. Com seus
trabalhos ajudou a dar voz a Pedro Braga. Localizou junto a família do contador quatorze cadernos manuscritos em verso e prosa, dos quais muitos compõem a sua dissertação de mestrado. Ainda de acordo com Souza (2018, p.8-9) Pedro Braga inspirou Eliane Caffé a criar o personagem Antônio Biá, do filme Narradores de Javé, de 2003. Eliane Caffé tomou conhecimento de Pedro Braga por meio do livro o Artesão da Memória de Vera Lúcia Felício Pereira e com ele trocou correspondência.
Sobre Pedro Braga, disserta Pereira (1996),
Seu Pedro é, no Vau, agente dos Correios e, ao sentir-se na obrigação de manter o posto aberto, único fio de comunicação e vínculo com o progresso, escreve cartas aos que conhece ou de quem já ouviu falar. Como muitas pessoas o procuram, atraídas pela sua fama de contador, solicita aos visitantes o endereço na esperança de que, enviando e recebendo muitas cartas, consiga impedir o fechamento da única instituição que liga sua terra ao resto do país (PEREIRA, 1996, p. 30)
O narrador-contador do Vale tem muitas faces, muitas histórias e é impossível descrevê-lo sem incorrer em reducionismos ou dicotomias. Assim, nas palavras de Walter Benjamin:
Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo distante, e que se distancia ainda mais. Descrever um Leskov como narrador não significa trazê-lo mais perto de nós, e sim, pelo contrário, aumentar a distância que nos separa dele (BENJAMIN, 1985, p. 197).
Esperamos ter contribuído para o conhecimento, ainda que aproximado, destes contadores-narradores do Vale do Jequitinhonha, a quem somos gratos pela arte de narrar e por ser inspiração.
Cleomar Poletto
15 de dezembro de 2024
Referências bibliográficas:
ANTUNES, Carolina. Recontos do Jequitinhonha e alhures. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2009.
BENJAMIN, Walter. O Narrador: magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. 3a Edição. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
BORGES, Cristina Nogueira. Um home da palavra: um estudo da poesia oral de Abel Tareco. Dissertação de mestrado / Faculdade de Letras da UFMG, Belo Horizonte, 2008. Disponível em https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/ECAP-7GCG8S. Acesso 14 de
agosto de 2024.
FREITAS, Neide; QUEIROZ, Sônia. Vissungos: cantos afrodescendentes em Minas Gerais. 3a ed. Revista e ampliada. Belo Horizonte: Laboratório de Edição – FALE/UFMG, 2015.
LEITE, Ana Carolina Gonçalves. O campesinato no Vale do Jequitinhonha: da sua formação no processo de imposição do trabalho à crise da (sua) reprodução capitalista. São Paulo, 2015. USP. Tese de Doutorado, p.66-83. Disponível em https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-05082015-124614/pt-br.php. Acesso 10 de maio de 2024.
PEREIRA, Vera Lúcia Felício. O Artesão da memória no Vale do Jequitinhonha. Belo Horizonte: Editora UFMG e Editora PUC-Minas, 1996.
QUEIROZ, Sônia et al. 7 histórias de encanto e magia. PROGRAMA POLO DE INTEGRAÇÃO DA UFMG NO VALE DO JEQUITINHONHA, Belo Horizonte: UFMG, 1999.
QUEIROZ, Sônia et al. No tempo que os bichos falavam. PROGRAMA POLO DE INTEGRAÇÃO DA UFMG NO VALE DO JEQUITINHONHA, Belo Horizonte: UFMG, 2009. SOUZA, Josiley Francisco. Conforme certas tradições: Pedro Braga. Edições Bichinho Gritador no 11. Belo Horizonte: 2018.
Saiba o significado:
- Turmeiro é um mediador da relação de trabalho que existe em diversas regiões do país e também no Vale do Jequitinhonha. É o responsável por selecionar mão de obra para o trabalho, no caso do Vale, recrutar os “boias-frias” para o trabalho nas fazendas.