Entre dobras, remendos e costuras, oficineiros da SBPC Cultura transformaram retalhos em boneca símbolo da resistência do povo afro-brasileiro

A cultura brasileira muito deve à mãe preta e às bonecas Abayomi. Confeccionadas nos interiores dos navios negreiros de séculos passados, durante o transporte daqueles africanos que seriam escravizados no Brasil, elas simbolizam, hoje, a resistência do povo afro-brasileiro.

A mãe com seu filho nas costas. Segundo Divina, as mãos das mulheres devem ficar livres para o trabalho braçal. Foto: Gabriel Araújo/ UFMG

“No interior dos navios negreiros, as crianças eram separadas de suas mães e ficavam chorando. Então as mães rasgavam as próprias vestes, faziam bonecas, só com nozinhos, sem outro material, e mandavam para essas crianças. As crianças sentiam aquele acalento, o colo da mãe, o cheiro da mãe, a roupa da mãe… Quando elas recebiam as bonecas, sabiam que a mãe amava cada uma delas, independentemente de estarem lá fisicamente ou não. Isso dava força para as crianças resistirem ao que estava por vir”. Quem explica é Divina Neder. A professora dos anos iniciais do Ensino Fundamental ministrou a Oficina Abayomi: um olhar afetivo em navios negreiros, na tarde de quarta-feira, 19, na programação da SBPC Cultura.

Divina Neder, professora que ministrou a oficina. Foto: Gabriel Araújo/ UFMG

Mão na massa

Remendando, dobrando, cortando e fazendo nós em retalhos, os oficineiros eram desafiados a criar a própria boneca. Engajados na tarefa, muitos se descobriam nesse processo.

Cristina Pimenta, de 31 anos, servidora técnico-administrativo da UFMG, encarou a oficina como uma oportunidade de identificação. “Apesar de ser negra, eu não tenho muito contato com essa cultura”, reconhece, “então sempre que tenho oportunidade eu tento buscar, entender, me aproximar.”

Cristina estava sentada à mesa junto com Gabriel Santos, de 19 anos, que veio de Teixeira de Freitas (Bahia) para participar da SBPC em Belo Horizonte. O estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Saúde, da Universidade Federal do Sul da Bahia, veio apresentar um pôster na Reunião Anual e procurou outras atividades complementares. “Achei muito interessante quando vi a oficina de bonecas”, ressaltou.

Hugo Nogueira, 20 anos, completava a mesa. O estudante cursa Arquitetura e Urbanismo na UFMG e, como Cristina, está em processo de descoberta e imersão na cultura afro. “Aproveitando que as oficinas são abertas ao público, eu decidi aproveitar ao máximo: principalmente as de temática afro e indígena, que me interessam muito.”

Por trabalhar essas temáticas em seu percurso acadêmico, ele considera a proposta muito importante. “Não tenho professor negro, e essa temática não é abordada pelos professores brancos”, Hugo afirma. “Quando a universidade traz para o estudante um pouco desse mundo, além de descobrir um novo lado sobre a nossa própria vivência, a gente passa a ter uma sensibilidade maior com a história e a vivência de outros povos e outras culturas”.

A professora e os oficineiros. Foto: Gabriel Araújo/ UFMG

Em iorubá, Abayomi significa “Encontro Precioso”. Simboliza o encontro de amor das crianças com a mãe, mesmo quando elas não estão juntas. No período colonial, a boneca possibilitava a fantasia para as crianças submetidas aos maus-tratos da escravidão.

Amanda Valverde e sua abayomi “fashionista”. Foto: Gabriel Araújo/ UFMG

“Muito fashionista a minha boneca”, disse Amanda Valverde, após colocar um turbante de retalho em sua abayomi. A estudante de 23 anos, que cursa Terapia Ocupacional na UFMG, considerou a oficina uma “surpresa boa”. Esperava uma palestra sobre navios negreiros, mas se empolgou ao ver os retalhos em cima da mesa. “Na minha área, a gente tem que trabalhar com a criatividade a todo momento”, explica, “então eu achei massa!”

Lazer e valorização

Aos poucos, a oficina ficou lotada, com a chegada das crianças da Escola Municipal Vinícius de Moraes. Yasminn Vitória, de 6 anos, era uma das mais expressivas: irritada por achar o processo de construção da boneca muito demorado, contentou-se em criar um “bebezinho”. “Você vai colocar assim inteiro, vai ficar uma gracinha!”, disse à sua amiga, quando aceitou a ajuda para amarrar o retalho da manta do bebê.

Yasminn Vitória posa com o bebê que fez. Foto: Gabriel Araújo/ UFMG
Heloísa dos Santos, coordenadora e professora na Escola Municipal Vinícius de Moraes. Foto: Gabriel Araújo/ UFMG

Heloísa dos Santos, coordenadora e professora da escola, avalia que toda a programação da SBPC contribui para o conhecimento dos pequenos. Interrompida diversas vezes pelos chamados de “tia” e “professora, olha minha boneca”, completa: “Os meninos precisam conhecer outras culturas”. Não outras, talvez Divina Neder dissesse, caso ouvisse o comentário da professora: essa cultura também é nossa. “Uma vez me disseram que se a história te toca, ela faz parte de você. Então, intimamente, geneticamente – dizem que a gente tem memória genética, né? – essa cultura é nossa. Devemos nos apropriar dela”.

A boneca abayomi na SBPC Cultura. Foto: Gabriel Araújo/ UFMG